Título: O STF e o "tanquinho" que o PT não quer encarar
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/08/2007, Opinião, p. A14

No segundo dia do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da denúncia do Ministério Público contra 40 pessoas, entre elas hoje ex-dirigentes e parlamentares do PT e ex-ministros do primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, o site da legenda estampava, como manchete: "Previdência dos trabalhadores rurais será mantida, garante Lula". Na lista das notícias do dia, nenhuma referência a um julgamento que entra na história por várias razões, várias delas ligadas ao partido e ao governo Lula.

Vai entrar na história, em primeiro lugar, porque é a primeira vez que se propõe a colocar no banco dos réus do STF um número tão grande de pessoas que representam um círculo completo dos "arranjos" que envolvem o financiamento das campanhas eleitorais no Brasil no seu modelo mais convencional - e no topo do esquema estão ex-dirigentes de um partido de esquerda, formado justamente como uma contraposição à política tradicional. O julgamento iniciado pelo STF expõe com uma clareza absoluta a adequação do PT a essa política, que se desenrola publicamente com um rosto, mas sobrevive de ações subterrâneas que dão aos partidos condições econômicas de concorrência política e poder de barganha para composição de uma base governista.

Vai entrar para a história também porque o PT, incluindo aí as correntes minoritárias que não participaram das negociações que desaguaram no escândalo do mensalão, resolveram não revolver a história. Nos primeiros meses após o estouro do escândalo, o partido ensaiou uma rediscussão de suas práticas, mas os dirigentes envolvidos se afastaram espontaneamente, a facção dominante retomou a sua hegemonia interna e o assunto acabou se resumindo a uma discussão sobre um complô da direita para derrotar o presidente Lula na disputa pela reeleição, em 2006 - e, depois, em denúncias reiteradas de "golpismo" da oposição para inviabilizar um governo petista.

Não há dúvidas de que a oposição ao governo Lula usou fartamente o episódio, extremou confrontos em CPIs variadas e tentou assumir o discurso ético que antes era monopólio do PT. Mas é certo também que o partido foi empurrando a discussão interna sobre a ética política para debaixo do tapete. O PT sentiu-se anistiado pela reeleição de Lula e por um surpreendente bom desempenho eleitoral no ano passado (que incluiu a reeleição de parlamentares petistas envolvidos no escândalo), aos poucos devolveu poder ao grupo hegemônico e se prepara para um III Congresso, sua instância máxima, com o discurso de olhar "para o futuro", não para o passado.

Na terça-feira, dois governadores petistas, Jaques Wagner (BA) e Marcelo Déda (SE), colocaram o dedo na ferida. Wagner afirmou que "viram que não somos a Brastemp que imaginávamos", ao que Déda retrucou: "É, mas também não querem [os petistas] voltar ao tanquinho [de lavar roupas]". É esse o espírito das teses que foram apresentadas para discussão no Congresso que ocorrerá nos dias 31 de agosto e 2 de setembro. Entre todas as apresentadas pelas diversas tendências do partido, apenas uma propõe uma discussão específica sobre a crise petista. Outra, do grupo "Mensagem ao partido", faz também menção clara ao escândalo, diagnosticando que ele decorre de uma adaptação do partido "às formas tradicionais de fazer política no Brasil" - e, por isso, configura-se "uma crise política, organizativa e ética".

As previsões dos atores desse Congresso petista são de que dificilmente o partido discutirá clara e publicamente o escândalo que, quase simultaneamente, é avaliado pelo STF. Isso inclusive pelo poder que, aos poucos, pessoas envolvidas no esquema de financiamento de campanha de 2004 (que deram origem à denúncia de um "mensalão") voltaram a ter. Isso é passado, decidiu o Partido dos Trabalhadores. Quanto ao futuro, muitas teses propõem a criação de um Código de Ética, que não existe, e de uma corregedoria independente da direção partidária. Algumas desfilam críticas claras ou veladas ao aparelhamento partidário por grupos e sugerem mecanismos de redemocratização interna. As boas intenções dessas propostas podem ser anuladas pela recusa em discutir o passado. É difícil imaginar que, ignorando-o e mantendo os mesmos grupos no poder, o PT possa encarar um "tanquinho" e se afastar das práticas tradicionais da política brasileira.