Título: Decisão mostra arrojo político do STF"
Autor: Junqueira, Caio
Fonte: Valor Econômico, 30/08/2007, Política, p. A10

Rafael Jacinto/Valor Arantes: "Voto de Lewandowsky mostra exigências que acusação precisará suprir" Depois do recebimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, duas tendências devem prevalecer no julgamento final do mensalão, dentro de alguns anos. Uma, mais formalista, será influenciada pela absolvição estritamente técnica do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Outra, que começa a despontar em razão da nova composição da Corte, tem perfil politicamente mais sensível e aberta a dar uma resposta ao sentimento de impunidade vivido pela sociedade brasileira.

É entre esses dois campos que o cientista político Rogério Arantes, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), avalia o cenário futuro no STF em um dos mais importantes julgamentos de sua história. A seguir, trechos da entrevista concedida ontem ao Valor:

Valor: Como o senhor avalia o recebimento da denúncia e de que maneira o tribunal deverá prosseguir com esse julgamento??

Rogério Arantes: Olhando a composição atual, o tribunal decidirá combinando duas tendências. A primeira, a força de uma jurisprudência que tem como caso exemplar a absolvição de um presidente da República (Fernando Collor de Mello), condenado por crime de responsabilidade no Parlamento e destituído do cargo por conta dessa condenação. Entretanto, quando o caso foi levado ao STF na forma de crime comum de corrupção, os indícios não foram suficientes para condená-lo. Esse caso é exemplar e exercerá uma influência muito grande sobre o tribunal no caso do mensalão. E os juízes costumam considerar que, em se tratando de processo por crime comum, as exigências de provas e a demonstração inequívoca das condutas denunciadas são muito maiores do que as feitas pelo Parlamento em julgamento de um crime de responsabilidade. Se essa tendência predominar no tribunal, a possibilidade de absolvição se apresenta de maneira mais forte. Os advogados de defesa dos 40 acusados estão exatamente empenhados nessa tese.

Valor: E a outra tendência?

Arantes: A outra é nova e advém da mudança da composição da Corte. Os ministros hoje são mais sensíveis à dimensão política desses casos. Não digo que sejam suscetíveis à influência do Executivo ou do Legislativo. Refiro-me à opinião pública e ao papel também político que a sociedade espera do tribunal na relação com os demais poderes e no aperfeiçoamento da própria democracia. Diria que as últimas nomeações para o tribunal tiveram o efeito de incliná-lo, mesmo que ligeiramente, nessa direção. Isso pode ter algum efeito sobre sua maneira de julgar, guardados certos parâmetros é claro.

Valor: Como isso foi visto nesse julgamento?

Arantes: A maneira como o relator recebeu a denúncia e a ênfase dada por ele em determinados aspectos da denúncia sugere essa maior sensibilidade política do tribunal em relação ao seu papel, ou ao papel esperado pela sociedade, no sentido de que, se há indícios de que o esquema existiu, o tribunal deve reconhecê-los e enfrentar realmente a missão de avaliar o suposto esquema de corrupção política. Se essa tendência predominar, acentuando uma postura mais ativa do tribunal, seria de fato uma importante inflexão na tradição do STF.

Valor: Por quê?

Arantes: Porque ele pode simplesmente se basear no precedente do caso Collor e dizer que não há provas suficientes, apegando-se e realçando as eventuais deficiências técnicas do processo. Mas pode adotar uma outra postura, no sentido de que, a despeito de não haver uma comprovação tecnicamente cabal dos crimes, de provas que no direito penal em geral são requeridas para a condenação dos réus, resta evidente que, do ponto de vista político, houve uma prática que a sociedade condena e este tribunal de alguma maneira deve dar resposta a isso.

Valor: Qual tendência o senhor acha que deverá predominar?

Arantes: As pesquisas demonstram que o Supremo, quando se depara com dilemas desse tipo, não tende a um ou outro lado, mas toma a decisão que melhor preserva sua própria independência e legitimidade a longo prazo. Nesse caso específico é difícil prever. O que posso dizer é que o julgamento ocorrerá no fio da navalha dessas duas tendências. Percorrerá uma faixa intermediária que seja capaz de preservar a integridade do próprio tribunal. Mas a existência dessas duas tendências em si já representa grande novidade, pois ao lado da tradição de julgar mais tecnicamente as questões, revela-se agora essa outra tendência, de abrir-se um pouco às novas necessidades, aos dilemas da democracia brasileira e aventurar-se um pouco mais na direção de julgar os casos de uma maneira ligeiramente mais arrojada, do ponto de vista político.

Valor: Essas duas tendências de que o senhor fala são equânimes dentro do tribunal?

Arantes: Sim, equilibram-se.

Valor: É possível nomear quais ministros pertencem a elas?

Arantes: Não, pois são tendências que atuam sobre o tribunal como um todo e ministros que em um caso podem adotar uma delas, em outros casos podem atender à outra. Não há como carimbar ministros 'esse é formalista, esse não é'. Eles podem mudar ao longo da agenda de processos.

Valor: O ministro Ricardo Lewandowski foi o único voto divergente. Qual a importância desse voto em meio a essas tendências?

Arantes: O voto dele deve ser ouvido e anotado com atenção. Ali está representada a primeira tendência. Não que o voto do relator e da maioria que o acompanhou represente exatamente a segunda tendência, pois estamos apenas na fase preliminar do julgamento. Mas o voto contrário do Lewandowski representa aquela típica visão mais técnica do processo, que cuida das provas, das exigências formais e que apontou que uma parte da denúncia era incabível por conta dessas deficiências. Esse voto tem que ser bem observado porque vai repercutir mais adiante, quando o tribunal tiver que, aí sim, julgar essas pessoas e não apenas aceitar a denúncia contra elas. Esse voto divergente é igualmente importante porque de certo modo representa as exigências que a acusação precisará suprir no longo prazo para que essas pessoas sejam condenadas.

Valor: Pode-se dizer, a partir daí, que Lewandowski integrará essa tendência mais formalista no julgamento final?

Arantes: Nesse caso foi esse ministro, mas poderia ser outro.