Título: Para Blejer, não há sucesso após uma "tragédia"
Autor: Tatiana Bautzer
Fonte: Valor Econômico, 27/01/2005, Finanças, p. C8

Com uma conjuntura internacional menos favorável, e pressionado a começar a reverter ao menos parte da queda dos indicadores sociais deflagrada pela crise, o governo argentino terá em 2005 o desafio de convencer investidores domésticos e internacionais de que o colapso de sua economia serviu como lição, e de que agora as autoridades estão dispostas a cumprir seus compromissos. Só assim poderão chegar ao país recursos para permitir que a recuperação vivida nos últimos dois anos se transforme em crescimento sustentável e melhore a competitividade da economia da Argentina. "Espero que se entenda na Argentina que a saída do default será uma oportunidade para fazer as coisas corretamente daqui para a frente", disse o ex-presidente do banco central argentino Mario Blejer, que exerceu o cargo durante seis meses, a partir de janeiro de 2002, logo após a desvalorização cambial. Em entrevista concedida por telefone de Davos, onde participa do Fórum Econômico Mundial, Blejer considerou que, nos últimos dois anos, diversos fatores, alguns alheios à gestão econômica doméstica, ajudaram a Argentina a crescer. Ao alto preço das commodities se somaram os salários baixos, o congelamento das tarifas públicas e a possibilidade de taxar as exportações e de não pagar a dívida em default. "Esses elementos ajudaram a compensar a baixa competitividade. Mas não se pode manter os salários baixos e as tarifas congeladas, e se os preços internacionais vão bem ou mal não depende da Argentina", pondera. Diante da dimensão da crise que levou ao calote, Blejer rejeitou até falar em eventual "sucesso" da reestruturação, e prefere considerar que foi uma verdadeira "tragédia" da qual todos, de um modo ou de outro, sairão perdendo. A seguir, os principais trechos da entrevista. Valor: Como o sr. avalia as perspectivas do país para 2005? Mario Blejer: Após a crise, 2002 foi o ano da estabilização, em que se evitaram os males maiores, como a hiperinflação e o colapso total do sistema financeiro. Depois disso, 2003 e 2004 foram anos de recuperação, nos quais houve um crescimento bastante importante do PIB, com indicadores macroeconômicos muito bons. Em 2005 teria de começar o crescimento sustentado, e para isso é evidente que há um bom começo, mas a sustentabilidade não está assegurada. Mesmo que 2005 seja um bom ano, o importante é que se construam bases firmes para o crescimento. Os indicadores macroeconômicos são muito bons, mas os sociais são muito ruins. E para sair disso é necessário ter um crescimento acima de 5% por muito tempo. Valor: E o que falta para obter esse patamar de crescimento? Blejer: A forte expansão dos últimos anos, que é a base para o crescimento de 2005, está amparada por elementos que não necessariamente são permanentes. Acho que a Argentina tem um problema de competitividade e produtividade muito grande. De acordo com o índice de competitividade internacional (elaborado pelo Fórum Econômico Mundial), a Argentina está no posto 74 entre 104. Essa falta de competitividade foi preenchida por distintos fatores: os bons preços internacionais (das commodities), os salários baixos, os preços dos serviços públicos, a possibilidade de taxar as exportações, não pagar a dívida por causa do default, aliados a uma política fiscal responsável. Esses elementos têm ajudado a compensar a baixa competitividade. Mas não se pode manter salários baixos e tarifas congeladas, e se os preços internacionais vão bem ou mal não depende da Argentina. Nessas circunstâncias é preciso suprir a falta de competitividade com um processo de crescimento genuíno da produtividade. Isso só se faz com novos investimentos, de modo muito mais dinâmico do que o processo de investimento visto até agora. É verdade que os investimentos se recuperaram, mas em ritmo muito menor do que poderia ter ocorrido, e houve uso da capacidade instalada existente. Esse capital instalado não é necessariamente muito moderno, já está obsoleto em muitos casos. Valor: Mesmo com a melhora da economia, o sistema bancário ainda não se recuperou e o crédito é escasso. O que falta para a normalização do crédito? Blejer: O sistema bancário esteve a ponto de desmoronar completamente, e acho que fizemos tudo que foi possível para evitar isso. Hoje o sistema está convalescente, saindo da doença, mas em recuperação. De todas as formas, o crédito é uma das últimas variáveis que se recupera após uma crise. Na Argentina o que falta neste momento é exatamente o que falta para recuperar os investimentos: confiança e uma recuperação da expectativa para que os clientes deixem seu dinheiro no banco por períodos mais longos. Em segundo lugar, tem de haver demanda, e os bancos têm de confiar em que o dinheiro que emprestem será bem aplicado. Valor: A retomada do pagamento da dívida aos credores privados vai ter algum efeito sobre o dólar? Blejer: Acho que o câmbio está equilibrado, não há problema. Porque ao mesmo tempo em que se sai do default (com saída de dinheiro para pagar dívida), é óbvio que haverá também mais entrada de fundos. Valor: Como o sr. avalia a resistência da Argentina em cumprir metas qualitativas nos acordos com o FMI, como a reforma dos bancos públicos e da distribuição de impostos entre as províncias? Blejer: Estes são elementos de longo prazo com os quais a Argentina terá de se preocupar. Terá de ter uma política clara de atuação dos bancos públicos, que é uma pergunta que tem de ser respondida com ou sem o Fundo. O mesmo em relação às tarifas, à relação entre o governo federal e as províncias. As perguntas estão aí, mas se isso será feito em um contexto de um programa com o Fundo, com prazo, ou em um contexto em que o próprio governo define suas prioridades eu não sei, é uma decisão política. Valor: O sr. acha que se a reestruturação for bem-sucedida, a Argentina poderá voltar rápido aos mercados de capitais? Blejer: A saída do default não é condição suficiente, mas necessária para reinserir-se no sistema financeiro internacional. Para isso é preciso restaurar a percepção de que a Argentina está fazendo as coisas bem, de maneira séria. E eu não gosto de falar de sucesso da reestruturação. Na verdade o que se está buscando é uma solução que é relativamente ruim para todos. É a solução de um problema, de uma crise e até de uma tragédia de certo modo, mas não acho apropriado falar de sucesso nesse sentido. Espero que se entenda na Argentina que a saída do default é uma oportunidade para fazer as coisas corretamente daqui para a frente. Valor: O sr. acha relevante a discussão sobre o percentual de aceitação da proposta como termômetro do seu êxito? Blejer: Não acho que seja relevante colocar um número. O relevante é se isso restaura ou não a posição da Argentina nos mercados internacionais, se é possível sair ao mercado e se os processos contra a Argentina não vão atrapalhar a reestruturação. É preciso ver o resultado em termos de suas conseqüências. Valor: Então não vai ser possível avaliar isso imediatamente após terminado o prazo para a troca de títulos, em 25 de fevereiro? Blejer: Exatamente. Não saberemos se a aceitação será ou não suficiente para sair do default. Valor: O que o sr. acha da visão do governo de que os custos do default devem ser compartilhados? Blejer: O default foi uma responsabilidade compartilhada por muitos. É preciso reconhecer que foi o governo argentino que se endividou, e tem responsabilidade importante. Mas quando se tomam essas decisões de comprar um bônus com muito risco e rendimento, aquele que compra compartilha a responsabilidade. Há uma responsabilidade dividida entre todas as partes, incluindo FMI e colocadores dos bônus.