Título: Crise imobiliária nos Estados Unidos. E agora?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/08/2007, Opinião, p. A14

"Ninguém ainda ligou para dizer que o céu estava caindo". Esta foi a resposta dada pelo presidente do FED de Saint Louis, William Poole, em 15 de agosto, quando lhe perguntaram se o FED cogitaria reduzir a taxa básica de juros caso a crise do setor imobiliário se intensificasse. Esta frase tem agora posição de destaque em qualquer coleção de citações famosas. Afinal, cortar os juros foi exatamente o que o FED fez no dia 17 de agosto. Não a taxa básica - pelo menos não ainda -, mas a menos importante taxa de redesconto, que caiu 50 pontos base. Na verdade, depois de uma série de sinais de alerta, que incluíram manchetes nas primeiras páginas dos jornais já em fevereiro deste ano, a crise no setor imobiliário americano golpeou os mercados financeiros globais com força total.

Hoje, duas semanas após o pânico, a crise parece ter arrefecido. Mas algumas perguntas ainda não foram respondidas. Afinal, o que a crise no setor imobiliário americano significa para a economia global? Estariam os mercados financeiros em risco de uma crise sistêmica, como aquela que ocorreu em 1998 com a quebra do hedge fund Long-Term Capital?

Nas linhas abaixo pretendo argumentar que muitas destas preocupações são exageradas e que a crise no setor imobiliário americano, enquanto séria, não coloca em risco nem a economia mundial, nem o sistema financeiro global. O argumento é baseado em três pontos: (1) de que o ajuste no setor imobiliário americano não representa o estouro de uma bolha especulativa; (2) que o sistema financeiro global é hoje muito menos vulnerável do que em 1998 e (3) que a crise do setor imobiliário faz parte de um processo saudável e gradual de ajuste no déficit em conta corrente americano.

Comecemos com o argumento da bolha especulativa no setor imobiliário americano - uma bolha que seria grande o suficiente para estourar sobre seu próprio peso e carregar consigo toda a economia global. Bem, a forte valorização do preço de um ativo nem sempre indica a existência de uma bolha especulativa e pode, na verdade, ser resultado de forças fundamentais. E é isto justamente o que explica a valorização dos imóveis nos EUA, assim como de vários outros ativos de risco. Alguns cálculos são ilustrativos. Por exemplo, desde meados da década de 90 as taxas de juros reais vêm gradativamente cedendo na economia mundial, de um máximo de 7% em 1994 para 2% em 2007. E o efeito de tamanha redução nas taxas de juros reais sobre o preço de qualquer ativo que garanta um fluxo de caixa futuro é impressionante. Por exemplo, um ativo que pague, por ano, em termos reais, um retorno médio de R$ 1 seria negociado, em 1994, a aproximadamente R$ 14. Hoje, pagando esse mesmo retorno médio, mas com taxas de juros reais de 2%, este ativo seria negociado acima dos R$ 50. Ou seja, uma valorização de 250% só no efeito da queda de juros e sem a existência de uma bolha especulativa. Portanto, na medida em que a valorização dos imóveis americanos, assim como de outros ativos de risco, foi resultado de forças fundamentais, não é de se esperar nem uma queda significante no valor destes imóveis - afinal, não existe estouro da bolha - nem repercussões importantes sobre a economia mundial.

-------------------------------------------------------------------------------- Acreditar que uma crise neste setor pode resultar em uma interrupção abrupta do crescimento global parece exagerado --------------------------------------------------------------------------------

Sobre o risco de uma crise sistêmica no sistema financeiro global, vale lembrar que o pior já passou. Os maiores riscos, tanto de estouro de bolha como de desalavancagem, ocorreram durante o processo de normalização das taxas de juros, entre 2004 e 2006, quando a taxa referencial saiu de um mínimo histórico de 1% para os atuais 5,25%. O sistema financeiro mundial, no entanto, reagiu surpreendentemente bem a tamanha elevação dos juros - o que ilustra não apenas sua atual solidez como também a inexistência de bolhas especulativas. Na verdade, hoje em dia, com os desenvolvimentos na tecnologia financeira pós 1998, o risco imobiliário não está mais concentrado nos balancetes dos bancos, mas sim diversificado por entre os hedge funds. Neste sentido, os argumentos para uma crise financeira global acabam sendo bastante indiretos. Por exemplo, como os bancos já repassaram seu risco de crédito para os hedge funds, uma queda abrupta no preço dos imóveis americanos não os afetaria diretamente. Os bancos, na verdade, só estariam vulneráveis na medida em que estivessem expostos justamente aos hedge funds que detém este risco de crédito. Isto poderia acontecer? Claro que sim, como comprova a experiência recente. Mas devemos reconhecer que o pior já passou e, para causar uma crise sistêmica, este é um argumento bastante indireto. Além do mais, com as taxas de juros já normalizadas, existe sempre uma última arma aos Bancos Centrais: eles podem derrubar os juros para espantar o espectro de uma crise financeira global.

Por fim, a crise do setor imobiliário americano faz parte de um saudável ajuste no déficit em conta corrente dos EUA. Na verdade, com a normalização das taxas de juros no patamar de 5,25% em junho de 2006, o FED entrou em uma fase de "esperar para ver". Ou seja, contrariamente ao que aconteceu em 2001, quando os juros subiram para 6,5% até que a bolha da tecnologia explodisse, a estratégia atual é muito menos ativista: uma normalização das taxas de juros, com o FED pacientemente aguardando o ajuste natural da economia. Este ajuste natural é composto de três fases. A primeira é a desaceleração do setor imobiliário - justamente o setor que possui a maior sensibilidade aos juros ou, em termos técnicos, a maior "duration". E seria de se esperar que os piores créditos deste setor, os subprimes, fossem os mais penalizados! Portanto, nada surpreendente até aqui. A segunda fase do ajuste ocorre quando a desaceleração do setor imobiliário irradia-se pelo resto da economia, através do efeito multiplicador. Neste sentido, devido a crise no setor imobiliário, os EUA devem crescer 2% em 2007 e em 2008, e apenas vagarosamente convergir para um crescimento superior a 3%. Finalmente, a terceira fase do ajuste é a redução do déficit em conta corrente, que resulta justamente desta desaceleração da economia. E o déficit em conta corrente americano, atualmente na casa dos 6,7% do PIB, é o maior de todos os desequilíbrios globais.

Notem que, na medida em que a economia dos EUA desacelera, diminui a probabilidade de um cenário de ruptura, ou "hard-landing" - em que o ajuste da conta corrente americana seria resolvido através de uma desvalorização desordenada do dólar. Ou seja, a desaceleração resultante da crise do setor imobiliário é, na verdade, um passo importante na direção de um pouso suave, ou "soft-landing", para os EUA. Além do mais, este ajuste está acontecendo em um momento particularmente importante da economia global - que não mais depende dos EUA como único motor do crescimento. As circunstâncias atuais, portanto, simplesmente não requerem um forte ajuste no setor imobiliário americano. Neste sentido, acreditar que uma crise neste setor pode resultar em uma crise sistêmica ou em uma interrupção abrupta do crescimento global parece ser um pessimismo exagerado.

Paulo Tenani é professor de Finanças Internacionais da Fundação Getúlio Vargas e chefe de Pesquisa para a América latina do UBS Pactual Wealth Management.