Título: Financiamento e danos ao meio ambiente
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/01/2005, Legislação & Tributos, p. E2

A legislação ambiental brasileira, transposta para o maniqueísmo bíblico, pode ser caracterizada como um verdadeiro armagedon, cenário da luta profética entre o bem e o mal. Composta por um verdadeiro cipoal de normas federais, estaduais e municipais vigentes concomitantemente e sem prescindir da complementaridade dos decretos, resoluções e circulares, a legislação ambiental brasileira tem encalacrado os seus intérpretes em razão do seu surrealismo, sobretudo no que concerne à responsabilidade por danos causados ao meio ambiente. Refugindo aos parâmetros científicos estabelecidos pela teoria quântica e pelas teorias do caos e da catástrofe, que apontavam a possibilidade de previsão dos comportamentos em larga escala, os legisladores brasileiros, em matéria de proteção ao meio ambiente, transcenderam em muito a razão e conceberam, com o martelo e o formão, um verdadeiro fundamentalismo verde tão doentio quanto a inquisição promovida pela Igreja Católica e o movimento xiita na religião muçulmana. Exalando esse odor patológico do fundamentalismo, a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente fora concebida como solidária, ou seja, responsabilidade na qual duas ou mais pessoas assumem igualmente as responsabilidades pelos danos provocados, independentemente do fato de uma delas ter concorrido diretamente e a outra de forma indireta ou circunstancial para a materialização do dano. Em outras palavras, o legislador brasileiro, totalmente despido do iluminismo de Voltaire e da razoabilidade de Theodor Adorno, sequer estabeleceu uma gradação, ainda por mínima que fosse, entre responsabilidade direta e responsabilidade indireta, sancionando tanto o efetivo causador do dano ambiental como também, por exemplo, um banco que tiver financiado um projeto do qual decorrer, em razão de culpa exclusiva da empresa financiada, dano ao meio ambiente. Essa falta de coerência expressa na legislação ambiental do país é atentatória ao desenvolvimento sustentável. Isso porque, como no caso dos bancos, que são reconhecidos agentes motrizes do desenvolvimento, essa responsabilidade solidária somente tem o condão de inibir os financiamentos e, conseqüentemente, fazer com que muitas empresas perpetuem suas atividades lesivas ao meio ambiente, já que, escasseando-se os créditos, a adequação de seu contexto produtivo torna-se uma párvoa e esmaecida fantasia, um mero suspiro de ilusão. Dispensar tratamento absolutamente igual a diferentes atores sociais que concorrem de forma totalmente diversa para a ocorrência do dano ambiental é, para dizer o mínimo, uma exuberância que caçoa do princípio da igualdade, já tão espoliado neste país que Eça de Queiroz via como um país de doutores.

O legislador brasileiro sequer estabeleceu uma gradação mínima entre responsabilidade direta e indireta

Sensíveis a esse descalabro contra o princípio da igualdade, muitos setores do Poder Judiciário já têm sobrelevado a responsabilidade subsidiária em detrimento da solidária. No entanto, sonegando esperanças aos tantos empresários que não podem prescindir dos financiamentos para adequar suas atividades, alguns promotores - poucos, é bem verdade - continuam nas fileiras do fundamentalismo, não reconhecendo que a responsabilidade das instituições financeiras tem que ser subsidiária a responsabilidade dos efetivos causadores dos danos ambientais e, olvidando do fato de que os próprios bancos conceberam recentemente os Princípios do Equador. Esses princípios são regramentos minuciosos que devem ser respeitados pelos bancos para a concessão de financiamentos socioambientais, reconhecendo e tentando prevenir e diminuir, ao máximo, todos os riscos, por exemplo, dos impactos que o uso dos combustíveis fósseis têm produzido sobre o meio ambiente terrestre; do uso de pesticidas que contaminam regiões agrícolas e interferem no metabolismo do cálcio das aves; da erosão do solo que está degradando de 20% a 35% das terras de cultivo de todo o mundo; da perda das terras virgens; do crescente problema mundial do abastecimento de água como conseqüência do esgotamento dos aqüíferos subterrâneos; e da destruição da camada de ozônio que protege a biosfera dos raios ultravioletas, entre outros tantos riscos. Dessa forma, face à magnitude da seriedade que permeia os Princípios do Equador, restam ainda mais evidenciadas as distorções da responsabilidade solidária entre empresas que tenham lesado o meio ambiente e instituições financeiras, tornando possível desnudar-se a ideologia da qual está revestida a nossa legislação ambiental e, sem surpresa, constatar seus desígnios em Owen, Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Assim, considerando que o fundamentalismo da responsabilidade solidária para esses casos está sendo paulatinamente superado no Poder Judiciário pela racionalidade da responsabilidade subsidiária, a partir de agora restarão aos fanáticos dissidentes apenas as crendices dos galhos de arruda, das ferraduras, das medalhas e fitas do Senhor do Bonfim. A eles cabe o conselho de Sofocleto: "Quando a gente se apaixona pensa em tudo menos no que está pensando".