Título: Questões sobre o subprime
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2007, Opinião, p. A2

Estamos atravessando a primeira crise do nosso bravo mundo novo de mercados financeiros securitizados. É cedo para saber quão importante será esta convulsão do ponto de vista econômico. Mas ninguém pode colocar em dúvida a sua relevância para o sistema financeiro. Suas origens estão na expansão do crédito e na inovação financeira na própria América. Não podem ser imputadas ao "capitalismo de compadres" nas economias da periferia, mas à falta de responsabilidade no núcleo da economia mundial. O ocorrido suscita questões importantes. Apresento sete.

Primeiro, por que esta crise começou nos EUA? A resposta é: "A concessão de empréstimos, estúpido". A inadimplência nos títulos mobiliários - atual e temida - sempre gera grandes crises financeiras, pois os credores acreditam que devem ser reembolsados. As famílias dos EUA foram os mais importantes tomadores de empréstimos da economia mundial em meados da década de 2000, substituindo os mercados emergentes da década de 1990.

Segundo, o que criou as condições para a crise? Foi uma combinação de tomadores de empréstimo tolos, investidores tolos e intermediários astutos, que convenceram os primeiros a tomarem emprestado o que não podiam arcar e que convenceram os últimos a investir em algo que não compreendiam. Na verdade, até os tomadores de empréstimo podem não ter sido tolos: se uma pessoa não possui nada, pode ser bastante sensato especular sobre preços de casas em alta constante, já que a falência pessoal é sempre uma saída.

Terceiro, porque esta crise se agravou progressivamente? "Contágio" é, como sempre, a resposta. Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve, descreveu o processo no seu pronunciamento na conferência de Jackson Hole, ocorrida na semana passada. "Embora o episódio aparentemente tenha sido desencadeado em grande parte por temores exacerbados em torno das hipotecas de alto risco (subprime), as perdas financeiras globais superaram em muito mesmo as mais pessimistas projeções de perdas de crédito sobre estes empréstimos. Parte destas perdas mais amplas devem refletir temores de que a debilidade no setor habitacional dos EUA pode restringir o crescimento econômico global. Mas outros fatores também estão atuando. A incerteza do investidor aumentou de forma significativa, num momento em que a dificuldade na avaliação dos riscos de produtos estruturados, que podem não ser transparentes ou que possuem esquemas de restituição complexos, ficou mais evidente. Igualmente, como em muitos casos de tensão financeira, a incerteza em torno de possíveis vendas forçadas por parte de participantes alavancados e um custo mais alto do capital de risco parecem ter levado os investidores a hesitar em tirar proveito de possíveis oportunidades de compra" (Housing, Housing Finance and Monetary Policy, www.federalreserve.gov).

Quarto, qual teria sido a extensão do dano causado pelo impacto? Considerando que os americanos tomam emprestado na sua própria moeda, as autoridades dos EUA podem, assim parece, afrouxar as políticas fiscal e monetária a seu critério. Apesar disso uma desaceleração global significativa não é impossível. Um motivo é que nem mesmo os EUA podem arriscar perder a confiança dos seus credores. Outro é que os prêmios de risco provavelmente aumentarão em todos os mercados, com conseqüências adversas para a atividade econômica em muitos países. Mais um motivo é que os bancos podem não ter o capital necessário para substituir uma retração temporária em créditos não bancários. Não é óbvio, além disso, quem atuaria como o tomador de empréstimo "em última instância", no caso de as famílias dos EUA cortarem as despesas. Por fim, perdas de vulto ainda poderão surgir em outros lugares, especialmente nos mercados habitacionais sobrevalorizados em outros países.

Quinto, como deverão reagir os bancos centrais? Eles têm duas funções clássicas: assegurar a estabilidade na economia, impedindo a inflação e a deflação; e fornecer liquidez a um sistema financeiro sem liquidez. O desafio no primeiro mandato é não ter uma reação exagerada por antecipação ao que pode ser apenas um modesto repique na economia. A taxa de juros federal quase certamente será cortada neste mês, mas não é óbvio que ela deva ser reduzida drasticamente. A inflação continua representando um risco, afinal.

-------------------------------------------------------------------------------- As crises financeiras são sempre diferentes nos detalhes e idênticas na essência e a atual não é nenhuma exceção --------------------------------------------------------------------------------

O desafio no segundo mandato será definir o que significa manter o sistema financeiro "líquido". A definição clássica é fornecer dinheiro - a reserva definitiva de valor e de meio de pagamento - para bancos sólidos ameaçados por saques generalizados. Uma definição possível nos mercados securitizados, porém, será atuar como comprador de última instância, garantindo a liquidez nos mercados em todos os tempos. Por motivos que explorei na semana passada, esta última definição seria uma mudança de postura perigosa.

Sexto, qual é o futuro do empréstimo securitizado? Bons motivos ainda podem ser apresentados para transferir a exposição dos balanços patrimoniais de bancos escassamente capitalizados a bancos de investidores externos melhor capitalizados. A teoria reza que desta forma o risco poderia ser transferido para os melhor capacitados para arcar com ele. A prática parece ser que o risco foi transferido aos que estavam menos capacitados a entendê-lo.

A oferta desta espécie de tolos se esgotou, ainda que temporariamente. No curto prazo, a dívida securitizada provavelmente se contrairá, enquanto as dívidas existentes forem sendo quitadas ou baixadas contabilmente. No horizonte mais distante os intermediários precisarão encontrar uma forma de tornar seus produtos mais transparentes para os compradores. Infelizmente, as agências de classificação de crédito, que no passado atendiam a esse propósito, perderam a sua credibilidade.

Sétimo, o que este evento implica para o futuro da regulação? É importante distinguir dois objetivos. O primeiro é proteger inocentes. Os investidores que compraram os produtos não se enquadram nessa categoria. Se não foram tolos, foram especuladores por sua própria vontade. Não está nem um pouco óbvio porque o Estado deveria tentar proteger tais instituições das suas próprias leviandades. As pessoas que tomaram emprestado para comprar casas podem, no entanto, ser consideradas inocentes. Se isto diz respeito a pessoas que exageraram na declaração dos seus ganhos para se qualificarem para empréstimos é uma pergunta em aberto. Paternalistas, porém, podem exigir o pagamento de um sinal mínimo ou a abolição de taxas de juros "provocadoras" e outros artifícios que estimularam as pessoas comuns a tomar mais empréstimos do que poderiam.

O segundo objetivo da regulação é isolar os mercados contra o tipo de pânico testemunhado nas semanas recentes. A única forma de conseguir isso pode ser desregulá-los completamente. Restrições deverão ser impostas sobre produtos vendidos ou sobre a capacidade de instituições financeiras se envolverem em transações não contabilizadas nos balanços patrimoniais. Não consigo ver agora como qualquer um destes objetivos possa ser implantado. A regulação de detalhes do sistema financeiro poderá oscilar entre o difícil e o impossível. Isto explica porque as instituições financeiras nunca precisam ser grandes demais para fracassarem.

As crises financeiras são sempre diferentes nos detalhes e idênticas na essência. A atual não é nenhuma exceção. Ela mostrou o padrão normal de preços dos ativos em alta, crédito em expansão, especulação, excessos, logo em seguida preços em queda, inadimplência e, por fim, pânico. Os novos mercados financeiros securitizados estão enfrentando um teste.

Logo saberemos em que medida conseguem passar nele