Título: O risco da bolha chinesa
Autor: Pereira, Por Marcel
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2007, Opinião, p. A12

A instabilidade no mercado financeiro persiste. Já esperávamos que assim fosse. Destacamos tal risco desde o primeiro semestre, quando emergiram os primeiros sinais de deflagração da crise de liquidez das hipotecas nos EUA. Havia um sinal explícito de que, embora ainda não se tratasse de uma reversão no quadro global de farta liquidez, estava instalada uma conjuntura na qual persistiria uma volatilidade mais freqüente, com maior aversão a risco e movimentos especulativos mais intensos.

A crise financeira desencadeada pelo surto de inadimplência que atingiu o mercado imobiliário de risco norte-americano é diferente das crises anteriores, pois no desenrolar daquelas outras sempre havia uma moeda local como alvo de um ataque especulativo. Nesta crise, inexiste um alvo. A aversão a risco atingiu não só os títulos derivados das hipotecas norte-americanas mais sensíveis à inadimplência, mas todos os derivativos dos fundos alavancados, dentre os quais muitos em posse de europeus e de uma expressiva parte de investidores chineses. Um "efeito manada" de resgates nos fundos de investimento comprometeu muitas carteiras de ativos, levando a uma retração no volume de crédito e, por conseqüência, a uma conjuntura na qual passou a prevalecer uma menor liquidez.

Apesar disso, o caráter da crise é essencialmente financeiro, com características de ajuste, cujos efeitos, por enquanto, ainda são pontuais sobre a atividade econômica. O maior perigo é a crise desencadear efeitos deletérios sobre o nível de produção e emprego não apenas da economia norte-americana, européia e japonesa, mas, sobretudo, na chinesa.

O nível de atividade mundial poderá ser gravemente atingido se a crise contagiar de forma substancial a economia da China. Uma desaceleração mais forte da economia chinesa implicará em preocupante redução nos fluxos comerciais globais e na queda do preço das commodities minerais. Isso afetaria diretamente o fluxo comercial brasileiro e, por conseguinte, teria uma intensidade muito mais aguda sobre a taxa de câmbio do país.

Em resumo, pode-se dizer que, até o momento, há dois fatores preocupantes neste cenário: as incertezas, por conta da crise, não terem um alvo específico, e a possibilidade de novos e mais expressivos resultados negativos nos fundos alavancados em derivativos de hipotecas norte-americanas.

Emergiu uma conjuntura macroeconômica inteiramente nova, similar, na herpetologia, a uma troca de pele. Ou seja, um processo que elimina alguns parasitas, mas durante o qual se fica mais vulnerável àqueles predadores delicadamente bem camuflados ao campo de visão da presa, cujo ataque pode vir a ser fatal.

Eis que se pode avistar agora, em águas turvas, uma silhueta daquilo que pode vir a ser um predador perigoso, cujo ataque poderia deflagrar uma grande recessão, e em escala global. Sob a sombra de uma conjuntura nebulosa em riscos e incertezas novos, a ameaça que cresce sorrateira e com potencial de estragos exponencialmente superior à "crise do subprime" é a "bolha bursátil chinesa".

-------------------------------------------------------------------------------- A expansão monetária via crédito na China é muito mais pujante do que a derivada das hipotecas americanas --------------------------------------------------------------------------------

Como resultado da nova conjuntura - "pós-deflagração da crise"-, todas as bolsas de valores depararam-se com um certo derretimento do valor de seus papéis: as norte-americanas, as européias, a japonesa e todos os satélites destas. Menos uma, que passou quase que totalmente livre de turbulências nessas últimas semanas: a chinesa.

A Bolsa de Valores de Xangai viveu nos últimos 20 meses um inchaço que, por si só, já era alarmante. Após o estouro da bolha imobiliária norte-americana, a valorização observada dos índices Shangai Composite e Shangai SE só fez inflar.

Apostando na pujança econômica da China, cuja atividade avança entre 11% e 12% ao ano, e sem perspectiva de rentabilidade em outros mercados, os investidores têm demandado fortemente as ações de Xangai.

O índice Shangai SE, da Bolsa da China, teve uma valorização de 224% nos últimos 12 meses. Só nos oito primeiros meses de 2007, a variação acumulada já é de quase 100%. Alguns pequenos detalhes dimensionam a proporção do que poderia representar hoje um "estouro de bolha" na Bolsa de Xangai. Há certas semelhanças entre a economia da China deste início de século XXI e a economia dos EUA nos anos de 1920, antecedentes à grande recessão, que explodiu após o crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.

O sistema financeiro chinês não está se modernizando ao mesmo ritmo da economia do país. Há uma grande quantidade de créditos de alto risco concedidos para o financiamento da atividade econômica, e, ao mesmo tempo, há uma crescente especulação imobiliária, facilitada pela forte expansão do capital chinês.

A expansão desenfreada do crédito, movida pelas sucessivas expansões de capital, é historicamente um dos fatores centrais a impulsionar um boom econômico. Entretanto, assim como infla, desinfla: a "crise do subprime" é um perfeito exemplo. A expansão monetária via crédito na China é muito mais pujante do que a derivada das hipotecas norte-americanas. Tratando-se de comparações frente aos EUA, o nível de crédito chinês, atualmente, é superior ao vivido pelos EUA nos anos 20. E as comparações entre estes dois períodos históricos não param por aí.

No período que antecedeu ao crash de 1929, a Inglaterra era a superpotência mundial e os EUA a potência emergente, papéis que hoje podem ser vistos nos Estados Unidos e na China. Nos anos 20, o Império Britânico dava sinais de decadência e, pelo "entre-Guerras", vivia uma situação de déficits gêmeos acentuado, assim como ocorre atualmente nos EUA. Este quadro forçou a Inglaterra - e força os EUA - a ser um devedor líquido, financiado pelo resto do mundo. Nos anos 20, os EUA eram o principal financiador das contas do Império Britânico; hoje, a China é a grande financiadora das contas externas norte-americanas. Em ambas as circunstâncias, a potência emergente vivia grandes superávits, tendo condições de ser um credor líquido. Quando o mundo forçou uma repatriação do capital, em função do auge da crise, a economia britânica entrou em colapso. Poderiam EUA e China repetir esse fato?

As lições deixadas pela história talvez sejam capazes de impedir um evento das mesmas proporções: a débâcle da economia norte-americana após o crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929 fez o nível de atividade recuar 66,6% e gerou uma deflação nos preços ao consumidor de 29,3%, acumulados num intervalo de apenas quatro anos (1930-1933).

É muitíssimo pouco provável que um eventual estouro na "Bolha de Xangai" seja capaz de causar uma tragédia nestas proporções. Entretanto, descartar a hipótese "apocalíptica" não significa ignorar os danos potenciais para a economia global: total reversão na pujança de liquidez, queda abrupta do preço das commodities, sobretudo as minerais, e crescente protecionismo comercial. Neste caso extremo, não há blindagem que resista.

Marcel Pereira é economista-chefe da RC Consultores e diretor de pesquisas do Instituto Atlântico.