Título: Depois de Battisti
Autor: Fontoura, Jorge
Fonte: Correio Braziliense, 13/01/2011, Opinião, p. 23

Um dos estereótipos de Hollywood relacionados ao Brasil imaginário foi desde sempre o clássico scape to Rio: em filmes de assaltos e golpes retumbantes, lá estava o invariável destino reservado a foragidos simpáticos que mereciam final feliz. Não foi simples ao nosso Supremo Tribunal Federal desconstruir o clichê de impunidade e abandono das terras do Zé Carioca. Isso se deu com reiteradas concessões de extradição, mesmo contra a opinião pública, como no caso Biggs (¿o ladrão é nosso¿), ou contra patrulhas ideológicas poderosas, nos casos Fiermenich e García Mezza. O primeiro era montonero argentino de extensa folha corrida; o outro, generalíssimo de óculos escuros e ex-ditador da Bolívia, por igual pouco recomendável. Ainda são emblemáticas as extradições do mafioso Tommaso Buscetta e da estrelíssima mexicana Gloria Treves, devolvidos sem interferência presidencial, até para deixarem de acreditar em cinema americano. Com isso, o STF elaborou, ao fio de décadas, apreciável arcabouço jurisprudencial, de qualidade e de atualidade inatacáveis, para no início do presente ano judiciário apreciar o desfecho do caso Battisti, em prudente decisão do presidente Cezar Peluso.

De qualquer forma, no rescaldo do Caso Battisti, o Brasil volta à ribalta, pelo nebuloso meio como se tenta explicar a opção presidencial, tanto contra decisões da justiça italiana quanto da própria justiça brasileira. Não há que questionar o poder do presidente da República, em nosso modelo político, para dar a última palavra em extradições. O que paira em vácuo de razão elementar é o embasamento que se pretendeu dar ao último ato de Lula. Instituto destinado a prevenir a impunidade, extradição não é julgamento em si. Trata-se tão somente de ato de cooperação entre nações civilizadas para devolver-se eventual criminoso a seu domicílio com o objetivo de clarificarem-se fatos ou de efetivar-se a aplicação de pena.

No imbróglio Battisti, o contraste entre a decisão de Lula e os precedentes julgamentos deixa às escaras fato inelutável: o Poder Executivo brasileiro também se arvorou no direito de julgar. E não apenas julgar a justiça italiana, mas julgar o próprio Supremo Tribunal Federal, todos em alguma medida tomados como facciosos perante a verdade presidencial. De fato, quem não viveu o autunno caldo, ou os anni di piombo não pode avaliar como a democracia italiana foi exuberante ao enfrentar o terrorismo brutal das brigadas vermelhas, sem leis excepcionais ou guantanamos de ocasião. De resto, como o fez a Alemanha, em relação ao grupo Baader Meinhof. Isso talvez garanta indenidade ao pedido italiano de ter de volta seu ex-terrorista, na convicção de que não deve haver ex-assassinos.

Como consequências nas relações bilaterais, nada haverá de ocorrer, além do turismo de foragidos a redescobrir o Brasil. Principalmente se Berlusconi continuar a governar, com seu pragmatismo eleático já a desqualificar o caso: ¿Pelo menos o Estado italiano está economizando alojamento e alimentação¿. Afinal, a maior fábrica Fiat está no Brasil e acordos comerciais em jogo interessam a quem vende, no caso, a Itália. Quanto ao recurso à Corte da Haia, como se tem aventado, a hipótese é tão remota quanto a credibilidade do primeiro ministro residente do Palácio Chiggi.

É certo que a índole democrática que Lula exercitou com tanta qualidade em seus dois governos não tomou em conta a gravidade do caso Battisti, o seu significado para a Europa e para a Itália. Na União Europeia, a autonomia penal dos países é religião em que não há ateus. Na Itália, não há vozes isentas, no parlamento, na academia ou nos sindicatos, que compreendam a decisão do ex-presidente brasileiro, em contraste com sua imagem democrática e republicana. Mal-informado e vítima de suas boas intenções, talvez Lula não tenha dimensionado o milagre que conseguiu realizar: de forma inédita, como exalta o Corriere della Sera, todas as esquerdas e mais a direita italianas estão juntas, do juiz das mãos limpas Di Pietro aos detestados separatistas da Liga Norte. Desde Garibaldi, muitos tentaram, Lula conseguiu.