Título: Um acusado que conduz seu próprio julgamento
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/09/2007, Opinião, p. A12

O governo não terá muito o que comemorar se, na quarta-feira, em votação secreta, o plenário do Senado absolver o presidente da casa, Renan Calheiros, por quebra de decoro parlamentar, no primeiro de quatro processos que tramitam contra ele na Comissão de Ética. Existem chances efetivas de que Calheiros escape dessa - não apenas pelos votos da base aliada, mas pelas expectativas de apoio de senadores da oposição -, mas sairá do plenário para o gabinete da presidência debilitado politicamente e condenará a Casa e o governo a mais alguns meses de paralisia. O desgaste se aprofundará até que os outros três processos sejam também julgados. Embora surjam versões de que Calheiros estaria propenso a "premiar" seus pares com sua renúncia ao cargo caso escape dessa, até agora ele insiste publicamente no seu direito de presidir a Casa que o julga por crimes cada vez mais variados.

O presidente do Senado foi incensado, desde a sua primeira eleição para o cargo, como um político hábil, com capacidade negociadora e bom trânsito em todos os partidos. Calheiros teve um papel importante na costura dos entendimentos que trouxeram todo o PMDB (teoricamente) para a base governista. Seria o aliado ideal se não se tivesse mostrado um alvo fácil para escândalos, faceta que veio à luz após a divulgação da denúncia da sua ex-amante, de que teria usado dinheiro do lobista da Mendes Júnior, Cláudio Gontijo, para pagar as despesas de uma filha nascida do romance. Da tentativa de se defender dessa primeira denúncia, o próprio Renan incumbiu-se de apresentar à Comissão de Ética do Senado, que o julgava, provas que suscitaram indícios de outras irregularidades. E essas fragilidades acabaram por animar seus inimigos a virem a público acrescentar novas denúncias. O presidente do Senado, hoje, é o seu próprio fantasma político. E o Senado paga essa conta acumulando contra si mais descrédito da opinião pública.

Argumenta-se, no caso desse primeiro processo, que, se Renan não conseguiu provar que pagou as despesas com a filha com dinheiro seu, também a Comissão de Ética não tem evidências de que o dinheiro usado teria sido o de Gontijo. No caso dessa acusação, pela qual será julgado na quarta, sua culpa seria duvidosa. Se esse é o argumento que será usado pelos senadores para absolvê-lo agora, não se pode utilizar o mesmo nas demais acusações que ainda estão em análise.

Para além das provas, o comportamento de Renan e de seu partido, o PMDB, durante esses meses em que o presidente do Senado tornou-se alvo, é, por si mesmo, de uma absoluta falta de decoro parlamentar. No olho do furacão, Renan decidiu que continuaria presidindo a instituição que o julgava, como se o cargo não lhe desse um imenso poder de coação sobre os demais senadores. Não há dúvidas de que tenha usado desse poder para tentar se salvar. Para livrar a própria pele, expôs ao desgaste o Senado, num momento em que o Legislativo ainda patinava para se recuperar do descrédito dos sucessivos escândalos dos anos anteriores. O PMDB, por sua vez, depois de ter exigido cargos e mais cargos para se compor com o governo, incluiu nas exigências a absolvição de Renan.

As instituições da tenra democracia brasileira mantiveram os vícios de um passado remoto, onde política e ética quase nunca foram bons aliados. Mas, ao que parece, elas vêm radicalizando os pecados da velha política. Não faz tanto tempo, o Congresso, por exemplo, definia intuitivamente como limite ao seu espírito corporativo o que era tido como tolerável pela opinião pública. À medida que o grau de desgaste se tornava perigoso, o Legislativo tinha por hábito ceder os anéis, para manter os dedos. Foi assim no caso do impeachment do ex-presidente, hoje senador, Fernando Collor de Mello, em 1992; no ano seguinte, foi a vez da CPI do Orçamento, que resultou na cassação e renúncia de vários parlamentares.

A partir do escândalo do mensalão, sucedido imediatamente pelo dos "sanguessugas" (políticos envolvidos no desvio do dinheiro do Ministério da Saúde), no entanto, o Legislativo parece ter perdido esse referencial. O governo se engana se acredita que garante base parlamentar apoiando envolvidos em escândalos, conforme exigência do partido aliado. A prova disso é que, desde a eclosão do escândalo Renan, o Congresso está paralisado.