Título: Cessão de direitos na indústria do petróleo
Autor: Marilda R. de Sá Ribeiro ; Denise O. de Albuquerqu
Fonte: Valor Econômico, 11/09/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Estamos completando dez anos da Lei do Petróleo - a Lei nº 9.478, de 1997 - festejando o crescimento significativo do setor petrolífero no país. Desde a promulgação da Lei do Petróleo e da realização de rodadas de licitação para a concessão de blocos exploratórios, os indicadores da indústria do petróleo no Brasil alteraram-se significativamente. De 1998 a 2005 houve um crescimento de 56% no número de reservas provadas e a produção de óleo aumentou em 71,3%. A participação do setor de óleo e gás no Produto Interno Bruto (PIB) cresceu de 2,7% em 1997 para 9% em 2004.

Por outro lado, com relação ao aspecto político-institucional, qual a estabilidade deste marco regulatório no país? Houve três questionamentos à constitucionalidade da Lei do Petróleo. Uma delas, que teve grande repercussão nacional, foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3273, proposta pelo governador do Paraná, Roberto Requião, que questionava principalmente o direito sobre a propriedade do petróleo extraído por concessionários. Nesta ocasião, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em março de 2005, pela constitucionalidade da legislação.

O voto do ministro Joaquim Barbosa, naquela oportunidade, já expressava preocupação com a insegurança jurídica que poderia ser criada por uma decisão que declarasse a inconstitucionalidade da lei, ao dizer que "é fato incontestável que a lei atacada já produziu inúmeros efeitos jurídicos. Sob sua égide, dezenas de contratos de exploração das jazidas de petróleo já foram firmados pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), muitos deles envolvendo somas de dinheiro cifradas em centenas de milhões de dólares. Milhares de profissionais da área de petróleo atravessaram os oceanos para vir se instalar em nosso país, por força dos contratos e das joint-ventures que se formaram com o objetivo único de aproveitar a oportunidade de negócios aberta com a flexibilização do monopólio do petróleo. Creio, pois, que devemos ter necessariamente em perspectiva o princípio da segurança jurídica ao decidirmos a questão posta nesta ação direta."

Em 2005, sete anos após a edição da Lei do Petróleo, por ocasião da sétima rodada de licitações da ANP, o partido político PSOL interpôs uma nova Adin questionando dispositivos da Lei nº 9.478. Dentre os dispositivos de constitucionalidade questionados, temos o artigo 29, que prevê a possibilidade de transferência do contrato de concessão celebrado entre a ANP e o concessionário. Esse dispositivo enuncia uma prática consagrada na indústria do petróleo, que tem ciclos macro e uma dinâmica própria de negócios. Um dos vetores desses negócios é a cessão de direitos entre empresas de petróleo, que alteram posições de sua carteira de ativos pelo mundo, atendendo às reorientações de seus interesses, sendo que fatos novos ou a simples reavaliação geológica política e econômica podem recomendar a outra (s) o aumento dos investimentos no mesmo país.

Até o momento, o Supremo ainda não se manifestou no caso e nenhum ministro proferiu voto. Já o procurador-geral da República, no fim do ano de 2006, emitiu um parecer favorável à inconstitucionalidade do artigo 29 da Lei nº 9.478, que trata da cessão de direitos, por contrariar o artigo 175 da Constituição Federal, segundo o qual "incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos". Ou seja, como o artigo 29 não previu a realização de uma nova licitação para a celebração da transferência do contrato de concessão, tal dispositivo seria inconstitucional.

-------------------------------------------------------------------------------- Ao se inviabilizar a realização da cessão, total ou parcial, iríamos na contramão da indústria internacional --------------------------------------------------------------------------------

O parecer do procurador não considera a distinção entre atividade econômica em sentido estrito da prestação de serviço público. A Constituição Federal, a propósito, disciplina a atividade econômica em artigo próprio - o artigo 173 -, sendo que o artigo 175 se refere à prestação de serviços públicos. Sobre a natureza da concessão petrolífera, como instituto totalmente distinto da concessão de serviço público, a qual é disciplinada em lei específica - a Lei nº 8.987, de 1995 -, pois se trata de desempenho de atividade econômica em sentido estrito, já há farta manifestação da doutrina.

A atividade econômica propriamente dita (gênero) é tratada pela Constituição em seus artigos 176 e 177 e consiste na realização, pelo Estado, de atividades que não estão ligadas diretamente à satisfação de direitos fundamentais. Tais atividades podem ser desempenhadas sob duas modalidades: sob o regime de monopólio ou na atuação direta pelo Estado em competição com os particulares. A atividade econômica, como gênero, pode ser dividida em duas espécies: serviço público e desempenho de atividade econômica em sentido estrito.

Apesar de a concessão, seja de serviço público ou de atividade econômica em sentido estrito, sempre se dar através de licitação, a Constituição brasileira em seu artigo 176, parágrafo 3°, prevê a possibilidade dos concessionários petrolíferos cederem, tanto total como parcialmente, os seus respectivos contratos de concessão, desde que haja prévia anuência do poder concedente. Com efeito, se a própria Constituição, em norma promulgada pelo poder constituinte originário, admite a cessão, reforça-se o fundamento da constitucionalidade do artigo 29 da Lei do Petróleo.

É importante ressaltar a necessidade de anuência prévia do poder concedente, a quem caberá averiguar se o cessionário atende aos mesmos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos exigidos, no processo de licitação, do cedente. Ao se inviabilizar a realização da cessão, total ou parcial, estaríamos na contramão da tradição na indústria internacional, pois se uma empresa concessionária resolve compartilhar os riscos de exploração em um dado bloco, este processo dinâmico precisa, no âmbito de um contrato de longa duração, estar disciplinado e legitimado pelo país hospedeiros dos investimentos. Em última análise, se este compartilhamento não for admitido, o projeto poderá tornar-se inviável ou não atrativo para a empresa que o assumiu originariamente e a empresa devolverá o bloco para a ANP. A reinserção de um bloco devolvido em uma nova licitação não é necessariamente boa para o país.

Outro aspecto muito importante diz respeito aos efeitos da decisão do Supremo, se declarada a inconstitucionalidade do artigo 29 da Lei do Petróleo. Caso seja aplicada a regra geral (efeitos retroativos), todos os contratos de concessão assinados teriam suas cláusulas sobre cessão nulificadas. Como desfazer as cessões já realizadas? Quem suportará o ônus do cancelamento dessas cessões: as empresas envolvidas na operação, o poder concedente ou a União, a exemplo dos casos de expropriação, em que os países hospedeiros devem garantir às empresas atingidas alguma compensação? Como os riscos políticos e regulatórios são levados em conta pelos investidores estrangeiros, uma decisão que tenha ímpeto sobre a avaliação da estabilidade política e regulatória do país poderia vir a representar um grande retrocesso para a indústria do petróleo brasileira.

Marilda Rosado de Sá Ribeiro e Denise Oliveira de Albuquerque são, respectivamente, sócia do escritório Doria, Jacobina e Rosado Advogados, ex-superintendente de promoção de licitações da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e coordenadora do Centro de Estudos Avançados e Pesquisas em Direito do Petróleo (Cedpetro); e advogada do escritório Doria, Jacobina e Rosado Advogados

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