Título: Luta inglória para manter a credibilidade
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 11/09/2007, EU & Prazeres, p. D6

A abertura de novos e poderosos mercados consumidores de vinho, fato que vem se repetindo desde o início da década de 80, afetou e continua afetando profundamente o panorama vinícola do planeta. Primeiro entraram os japoneses, depois vieram os "Tigres Asiáticos", e nos últimos tempos os países da Europa do Leste, notadamente a Rússia. Uma das conseqüências foi sua popularização, abrindo espaço para a ascensão do bloco de países do Novo Mundo com a proposta de vinhos mais baratos e descomplicados - conceito dos varietais (tem uma casta majoritária e ela é destacada no rótulo), frutados e passíveis de serem bebidos de imediato. Essa situação se repetiu em centros tradicionais, conforme abordado na coluna da semana passada dedicada ao mercado inglês.

A oferta de vinhos de volume é suficiente para atender com sobras o crescimento da demanda (refletindo em preços relativamente baixos), porém o mesmo não acontece com os rótulos especiais, aqueles que têm prestígio consolidado e produção limitada. Por serem provenientes de um vinhedo bem definido, e sem a possibilidade de aumentar o número de garrafas, os preços têm disparado.

Jorge Lucki / Valor David Elswood, da Christie's : assistência ao comprador e em caso de dúvida quanto à legitimidade, o dinheiro é devolvido A nítida recente tendência de alta, sobretudo nos grandes tintos de bordeaux das últimas safras - os 2003, nada extraordinários, já foram considerados abusivos; os 2005 ainda dobraram de preço (não se justifica, mas este, ao menos, é um ano excepcional); e os 2006, de qualidade heterogênea, estão numa faixa bem acima da expectativa do mercado -, se deve a um número cada vez maior de novos compradores de alto poder aquisitivo que não se importam com o preço, mas em ter vinhos de grife para enriquecer suas adegas.

Se essa é a realidade no que se refere a vinhos de safras mais recentes, aqueles que bem ou mal podem ser encontrados no comércio, pode-se imaginar o que acontece com os de safras mais antigas, que ao longo do tempo comprovadamente se mostraram superiores e evoluíram bem até hoje. Levando-se em conta, ainda, que o número de garrafas existentes é cada vez menor - vinho, não esquecer, (também) é para ser consumido -, para "simples mortais" apreciadores de vinho, elas atingiram patamares inacessíveis.

Ainda que existam negociantes oferecendo rótulos raros, a prudência recomenda não ser esse o melhor caminho de aquisição. A questão em geral não é preço, ao contrário, mas a garantia de autenticidade, o que não é tão óbvio assim de se certificar. O citado aumento do interesse por vinho por parte de grandes fortunas surgidas em países até há pouco considerados periféricos (Rússia, China, Taiwan, entre outros), inflando os preços dos rótulos mais célebres, justifica falsificações, cada vez mais sofisticadas, portanto difíceis de serem identificadas.

Lembro do caso de um jovem confrade de grandes degustações que juntou um grupo de amigos dispostos a comprar uma garrafa magnum de Petrus 1921, ofertada por um comerciante americano cerca de 20% abaixo do valor estimado de mercado. Precavido, meu caro companheiro foi buscar referências e, não obstante a ânsia de ter a garrafa, acabou desistindo dela.

Aparentemente não há o que fazer para ajudar a limpar o mercado, quando se está diante de uma situação no mínimo suspeita como essa. Segundo pessoas do setor, a luta é inglória; denunciar e ir em frente demanda determinação, tempo e muito dinheiro para propor uma ação, sem nenhuma previsão de sucesso - a comprovação de fraude em vinho é bem complexa.

Há, porém, quem tem bala para isso e foi atrás, caso da briga envolvendo o milionário americano William Koch, empresário de sucesso do setor de petróleo e dono de uma invejável coleção de quadros de pintores famosos e de uma adega com cerca de 40 mil garrafas.

Ele alega serem falsos os Châteaux Lafite 1784 e 1787, supostamente pertencentes a Thomas Jefferson, que antes de se eleger terceiro presidente dos Estados Unidos foi embaixador na França durante vários anos, onde desenvolveu tal paixão por vinhos que suas garrafas tinham as iniciais "Th J" gravadas no vidro. Koch as comprou de Hardy Rodenstock, um colecionador e negociante alemão de vinhos bastante conhecido no mercado. Tais garrafas fariam parte de um lote encontrado em 1985 nos subterrâneos de uma casa parisiense, atrás de um muro especialmente construído durante a guerra para esconder a rica adega.

Bill Koch comprou na confiança tendo em vista uma garrafa, em princípio do mesmo lote, ter sido comprada pelo magnata Malcolm Forbes na época de sua descoberta - por US$ 156 mil uma garrafa - e ela ter sua autenticidade garantida pela insuspeita casa de leilões inglesa Christie´s. A discussão começou quando assessores designados pelo americano descobriram que as iniciais "Th J" haviam sido gravadas a posteriori por meio de um instrumento elétrico.

Rodenstock, ao mesmo tempo em que se nega a informar o local onde o tesouro foi achado, também recusou oferta da revista Stern para que as garrafas fossem examinadas por um instituto nacional de pesquisa de materiais de Berlim. Como pretexto ele cita que a garrafa então vendida a Forbes foi certificada pela Christie´s, e isso poria fim à discussão. Diga-se de passagem, no entanto, que nada assegura que ambas estavam juntas. Diante do impasse, William Koch entrou com uma ação na justiça americana e até o FBI se envolveu para investigar o que já se caracterizou como uma industria de fraudes de vinhos renomados.

Assim, a saída mais segura, ou quase a única, para quem quer comprar vinhos célebres de safras atualmente ausentes no mercado - e tem cacife para tanto - é através das casas de leilões. Dentre elas, e talvez as mais respeitadas, estão as inglesas Christie´s e Sotheby´s, aonde fui recebido nessa minha estada em Londres, cidade sede de ambas.

Tanto Serena Sutcliffe quanto David Elswood, diretores-chefes do departamento internacional de vinho da Sotheby´s e da Christie´s, respectivamente, ressaltaram a preocupação com a crescente incidência de garrafas falsas no setor de vinhos raros. Para resguardar a imagem e manter a credibilidade, elas se impõem normas bastante rigorosas na seleção dos rótulos que vão ser leiloados, começando pela composição da equipe de analistas.

A expertise de quem ali trabalha permite separar o joio do trigo, até onde isso é possível a olho nu, seja pela adega em si, pelo posicionamento das garrafas, pelo rótulo, lacre, vidro, e estado do líquido, mas também pelo conhecimento de tudo que se passa no mercado, onde se subentende conhecer o currículo do vendedor e (quase) a trajetória de cada vinho até chegar aonde está. Em todo caso, as garrafas duvidosas são enviadas ao produtor, que tem seus segredinhos para assegurar a autenticidade.

Quando a suspeita persiste elas são rejeitadas. Sutcliffe e Elswood deixam claro que isso é inegociável, ainda que o vendedor teime em "tudo ou nada". É bem possível que essa seja a diferença entre casas de leilões sérias e as "nem tanto". No fundo, quem procura a Sotheby´s ou a Christie´s para vender seus vinhos sabe com quem está lidando, afastando, em tese, os espertalhões.

Apesar de ambas darem plena assistência ao comprador - orientação sobre o que adquirir e sugestão de até onde ir no preço (a partir daí é por conta e risco do interessado) - e total garantia - Elswood afirmou que em caso de dúvida quanto à legitimidade do vinho o dinheiro é devolvido - o verdadeiro cliente delas é o vendedor. Sem ele não há o que oferecer. É onde está o tesouro e o processo começa. Enfim, a casa precisa estar bem posicionada e ter bons contatos para garantir mais e bons vinhos para seus catálogos.

Os vinhos podem vir de consumidores privados, aqueles que montaram suas adegas para consumo próprio, grupo formado basicamente por quem morreu, está morrendo ou se divorciando, mas também por grandes apreciadores que resolveram dispor de parte de sua coleção. São desses últimos, pelo zelo na escolha e no armazenamento (itens que asseguram boa procedência), as garrafas mais procuradas e, assim, as que alcançam lances mais altos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com boa parcela dos vinhos cuidadosamente reunidos durante mais de duas décadas por Andrew Lloyd Weber, autor de grandes sucessos da Broadway.

Há, por outro lado, os investidores profissionais que estocam para revender com lucro no futuro. Aproveitando-se dessa fase favorável do mercado, que já dura cerca de 15 anos, eles são cada vez mais numerosos, e, como conseqüência, surge a figura dos "market makers", mais conhecidos como "puxadores" de preço. Serena Sutcliffe e David Elswood reconhecem que eles atuam e deturpam as cotações. Os dois experts do setor garantem que esses profissionais do mercado tendem a se concentrar em rótulos tops, os blue chips, "não mais de 50, entre os milhares que figuram nos catálogos. Investidor é só investidor, seu interesse não é o vinho, mas o lucro. Hoje ele aplica em vinho porque está dando retorno. É até possível que ele só beba cerveja; vinho caro não é para beber".

A primeira recomendação que ambos dão àqueles que basicamente compram para consumo próprio, não para especular, é fugir desses vinhos - os Premiers Grands Crus Classés de grandes safras, assim como borgonhas do Domaine de la Romanée-Conti, em especial. Segurar a ansiedade também é um bom conselho. Não esquecer que vinho não é como um quadro famoso, em que só existe um exemplar e é preciso decidir sim ou não. Talvez isso ocorra com garrafas raras, que estão em caixas originais, e procedem de colecionadores cuidadosos, mas não com a maioria do que é ofertado. Não é a última chance, pode-se esperar por uma outra oportunidade.

A propósito, esse viés de alta pode mudar como qualquer outro investimento, se a situação econômica mundial entrar em colapso. No entanto, os dois responsáveis pelos departamentos de vinhos da Sotheby´s e da Christie´s acreditam que isso não deve afetar, ao menos na mesma proporção, o mercado. O setor de vinhos tem uma particularidade: a demanda é muito maior do que a oferta e esta é e será sempre limitada. Sutcliffe e Elswood têm credibilidade e sabem o que estão dizendo. Mas bem que os preços poderiam dar uma baixadinha.