Título: A transposição de um problema
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2005, Política, p. A11

Aágua é uma das duas principais preocupações dessa gente que, desde 2001, junta-se todos os anos no Fórum Social Mundial. A outra é educação. Esses temas foram levantados em pesquisa do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Feita com 3,5 mil participantes do Fórum de 2004, realizado na Índia, a pesquisa levou a que o tema estivesse entre os mais debatidos do evento deste ano. Uma das estrelas do encontro de Porto Alegre, o economista italiano Ricardo Petrella, estima que 1,5 bilhão de pessoas não tenham acesso à água potável e que, a cada dia, 30 mil morrem em função de doenças relacionadas a isso - o número é dez vezes maior que o de vítimas fatais do atentado ao World Trade Center, em 2001. No Brasil, dados oficiais indicam que cerca de 45 milhões não tenham água de qualidade para beber em casa. Entre os organizadores do Fórum, calcula-se que, para zerar o déficit de água e esgoto no país, seria necessário investir 0,45% do PIB nacional (algo em torno de R$ 178 bilhões) nos próximos 20 anos. Quase um terço dessa população vive no semi-árido do Nordeste. A julgar pela veemência com que toca no assunto em seus discursos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está certo de que vai redimir essa população com o projeto de transposição do Rio São Francisco. Parece estar confiante de que, com o projeto, seu governo passará à posteridade como aquele que levou água a quem tinha sede. Ambientalista paulista, radicado no Rio e consultor de entidades como a Articulação do Semi-Árido Brasileiro, que reúne 750 entidades da região, Henrique Cortez diz que o projeto pode vir a expandir as fronteiras agrícolas do Semi-Árido, mas não resolve a vida da população sob permanente estado de emergência. O problema, diz, não é a transposição em si. Muitas no mundo foram feitas com sucesso, além do exemplo da cidade de São Paulo, abastecida pela transposição do rio Piracicaba - "O rio está morrendo e não existe banco de sangue que aceite doadores anêmicos". No cálculo dos especialistas, em 30 anos o Rio São Francisco passaria de perene a intermitente. Com a transposição, esse prazo se reduziria para 20 anos. Para revitalizá-lo, seria preciso levar às suas margens bilhões de mudas de árvores e negociar a situação fundiária de quem está na área de preservação, a menos de 30 metros do rio. Uma possível razão para não se revitalizar o rio antes de transpô-lo é que as mudinhas e a regularização fundiária rendem menor visibilidade que os canteiros de obras. Também envolvem mais gente e menos dinheiro. Se a necessidade é de fazer obras talvez fosse mais útil remendar os açudes que não foram capazes de reter a água do excepcional inverno do ano passado, quando quase todos sangraram. O serviço de açudagem está a cargo do DNOCs, instituição sob o guarda-chuva de Ciro Gomes. Henrique Cortez chega a dizer que o projeto do governo anterior era melhor do que o de Lula. Isso porque, dos quatro milhões orçados para a transposição no governo passado, metade seria destinada à revitalização. Este ano o Orçamento foi aprovado com mais de R$ 600 milhões já destinados à obra, sendo que apenas R$ 100 milhões na cota da revitalização.

"Banco de sangue não aceita anêmicos"

Uma grande parte dos envolvidos no debate da transposição acreditam que a obra, uma vez incluída no Orçamento, tornou-se irreversível, e que a disputa agora é por uma revitalização mais arrojada do rio. Uma outra explicação por que a transposição estaria sendo levada a cabo seria a determinação do ex-governador do Ceará e ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. Nos cálculos de Henrique Cortez, dos 26 metros cúbicos de água cuja transposição está autorizada, 21 serão destinados ao açude Castanhão, no Ceará, o maior do Nordeste. Os demais cinco serão divididos entre reservatórios do Rio Grande do Norte e da Paraíba. No ministério, o principal argumento pró-transposição é o de que a região a ser atingida pela obra vive uma situação de estresse hídrico, com um consumo de água equivalente à metade do recomendado pelas Nações Unidas. Artigo do professor de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner Guimarães Jr., sustenta que 70% da água a ser transposta beneficiaria a irrigação e que apenas 4% se destinaria a minorar o quadro mais grave das secas. Com a verba que apenas este ano será destinada à transposição, seria possível atingir a meta de 1 milhão de cisternas da Associação do Semi-Árido que, pela simples captação da água da chuva, já garantiria água para cinco milhões de pessoas. Outros especialistas como o geógrafo da Universidade de São Paulo, Aziz Ab'Saber, companheiro de Lula em muitas das viagens que o presidente fez à região, também já se manifestaram contrariamente ao projeto. Seu ponto também é o do acesso à água. As pequenas propriedades do semi-árido são, em grande parte, indocumentadas. Pertencem a netos e bisnetos de posseiros que assim permaneceram. Sem documentação, não conseguem sequer se candidatar a financiamento para ramais das adutoras. Daí porque é comum ver grandes propriedades com melão irrigado no sertão que dividem cerca com terras esturricadas. "A agroindústria de exportação está lá há 20 anos e nem por isso mudou a situação da pequena produção agrícola", diz Cortez. Para entender a crença de Lula de que o agronegócio garantirá a redenção do Semi-Árido, mais do que o pernambucano de Garanhuns, talvez seja preciso recuperar o metalúrgico de São Bernardo do Campo. Contrariamente aos seus companheiros petistas da clandestinidade ou aos egressos dos movimentos sociais da Igreja, os metalúrgicos ancoravam-se no mercado e seus empregos. Isso ajuda a explicar em grande parte as históricas desavenças acumuladas pelo PT ao longo dos seus 25 anos. E agora pode ajudar a entender a transposição de um problema.