Título: Renascimento nuclear já dá as caras nos EUA
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Fonte: Valor Econômico, 13/09/2007, Especial, p. A14

Nos próximos meses, a Nuclear Regulatory Commission (NRC), comissão reguladora do setor de energia nuclear dos EUA, espera receber 12 pedidos para a construção de novos reatores nucleares em 7 locais diferentes. Ela se prepara para receber outros 15 pedidos para 11 locais no ano que vem. Estas serão as primeiras solicitações plenas para a construção de novas usinas nucleares nos EUA em 30 anos. Se todas forem bem-sucedidas, o número de reatores no país vai aumentar em cerca de um terço. A geração de energia nuclear crescerá ainda mais - os novos reatores serão mais poderosos que os já existentes. O entusiasmo renovado pela construção de reatores significa que o aguardado "renascimento nuclear" está para se tornar uma realidade.

Ainda não se sabe se isso será um salto adiante ou um passo atrás. Desde a década de 1970, longe de ser "barata demais para medir" - conforme seus defensores outrora alegremente alegavam - a energia nuclear acabou se mostrando cara demais para valer a pena. O problema é o financiamento: a construção das usinas é muito cara, mas seu funcionamento é relativamente barato, ao contrário das usinas a gás. Portanto, para serem lucrativas, elas precisam ser construídas rapidamente para minimizar o período em que não há entrada de receita e os pagamentos de juros sobre os empréstimos tomados para a construção se avolumam. Mesmo assim, a geração anterior de usinas nucleares americanas foi abalada por problemas de segurança, revisões de projetos e procedimentos normativos demorados, que resultaram em atrasos ruinosos nas obras.

A usina nuclear mais nova dos EUA, a de Watts Bar no Tennessee, começou a operar em 1996. Mas ela precisou de 23 anos para ser concluída ao custo de US$ 6,9 bilhões; um segundo reator está sendo construído no local, de maneira descontinuada, desde 1973. Outra usina, a de Shoreham em Nova York, foi concluída e testada, mas nunca entrou em operação comercial por causa da oposição local. Quando ela foi descomissionada, em 1994 - 21 anos depois do início das obras - os custos haviam explodido de US$ 70 milhões para US$ 6 bilhões. A companhia de serviços públicos local conseguiu repassar a maior parte da conta para seus clientes. Mas nem todas as companhias de energia têm tanta sorte: em 1988 a Public Service Company de New Hampshire se tornou a primeira companhia americana de serviços públicos a quebrar desde a Grande Depressão, graças em grande parte às conseqüências de um projeto que sofreu muitas paralisações.

Mesmo nos casos em que entravam em operação, as usinas nucleares não cumpriam o que prometiam. Elas deveriam funcionar quase que constantemente, mas se mostravam menos confiáveis. No começo da década de 1970, por exemplo, uma usina nuclear produzia, em média, energia somente na metade do tempo em que estava em operação. Como a maioria das usinas planejava entrar em operação o mais rápido possível para gerar receita suficiente para pagar suas dívidas, esse desempenho ruim levou a mais problemas financeiros. E, com os ativistas antinucleares se queixando, tudo isso aconteceu apesar dos subsídios generosos concedidos pelo governo para ajudar a cobrir os custos de desenvolvimento de novos projetos e construção de protótipos.

E pior: a energia nuclear tem um histórico de segurança manchado. Nunca houve um vazamento de radiação catastrófico num país ocidental. Mas um deles aconteceu em Tchernobyl em 1986, na então União Soviética (hoje Ucrânia). Os Estados Unidos estiveram perigosamente próximos de um desastre desses em 1979, quando um reator da usina de Three Mile Island, na Pensilvânia, superaqueceu e começou a derreter. Já houve problemas de segurança menos graves e escândalos em muitos países, incluindo o Reino Unido, Alemanha e Suécia. Em agosto, um terremoto provocou vários pequenos vazamentos de material radioativo em um reator nuclear no Japão.

A próxima geração de usinas nucleares deverá ser muito diferente. As empresas que as constroem, como a General Electric e a Westinghouse, ambas dos EUA, e grupos estrangeiros como a Areva da França, insistem que esses episódios em breve serão coisa do passado. Seus projetos mais novos, garantem elas, são mais simples e seguros que os das que existem. Isso deve tornar mais fácil obter as permissões de funcionamento, permitir a construção mais rápida e uma operação mais barata.

Na maior parte dos EUA, o preço da energia no atacado está intimamente ligado ao preço do gás natural, uma vez que as usinas movidas a gás tendem a fornecer a energia extra exigida em momentos de pico da demanda. Portanto, o preço da energia vem subindo junto com o do gás nos últimos anos, enquanto os custos operacionais das usinas nucleares permanecem relativamente estáveis. Segundo a Energy Information Administration, uma agência do governo, o preço médio da energia no atacado em 2005 foi de US$ 0,05 por kilowatt-hora (kWh); o Nuclear Energy Institute avalia que o custo operacional médio das usinas nucleares americanas foi de US$ 0,017 por kWh naquele ano. A margem foi de quase 200%.

Não admira as companhias de serviços públicos estarem correndo para a NRC com seus planos para a construção de novos reatores.

Até recentemente, as usinas movidas a carvão pareciam ser investimentos mais seguros. Mas hoje em dia a maior parte das companhias de serviços públicos acredita - e em alguns casos está pedindo - que o Congresso vá limitar as emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa num futuro próximo. As usinas movidas a carvão, que têm uma vida útil de 40 anos ou mais, poluem a atmosfera, enquanto que as usinas nucleares quase não produzem gases responsáveis pelo efeito estufa.

Para acelerar ainda mais as coisas, a NRC está permitindo que as empresas que vendem reatores nucleares tenham uma aprovação dos projetos antecipadamente. Desta maneira, quando uma companhia de serviços públicos pede permissão para construir um reator de um projeto aprovado, a NRC precisa analisar apenas as modificações específicas impostas pelo local da construção.

Pela mesma medida, as companhias de serviços públicos podem agora solicitar à NRC que aprove a localização de uma nova usina nuclear antes que elas tenham problemas e despesas com solicitação de uma licença combinada. Outro atalho envolve submeter a parte ambiental de uma licença combinada antes da parte que lida com o projeto. A UniStar, uma joint venture entre a Constellation dos EUA e a Eléctricité de France (EDF), deu entrada com essa papelada em junho para a construção de um novo reator nuclear em Maryland.

A NRC também está se certificando de perguntar às companhias de serviços públicos sobre seus planos nucleares antes da chegada de qualquer pedido de licenciamento. Isso para que ela se certifique de que terá funcionários suficientes para lidar com os pedidos - é assim que ela sabe quantas usinas novas estão sendo criadas. Ela está contratando cerca de 200 novos funcionários todos os anos, e como a maior parte das companhias de serviços públicos interessadas em novas usinas nucleares está no sul do país, a NRC estabeleceu um escritório na Geórgia para trabalhar diretamente com elas. A Comissão está até mesmo planejando sugerir ao Congresso possíveis emendas nas leis relevantes, para reduzir ainda mais os obstáculos e as incertezas para se conseguir um licenciamento.

O processo continuará sendo demorado: a NRC avalia que vai precisar de dois anos e meio para analisar cada pedido e mais um ano para conduzir as audiências sobre suas conclusões. A certificação do projeto de um novo gerador poderá levar até quatro anos: a Areva diz que seu pedido para um novo modelo de reator tem 17 mil páginas e enche uma pequena estante. Mesmo assim, a NRC pretende emitir suas primeiras novas licenças até 2011.

Autoridades locais mais barulhentas ainda poderão ser um problema. Foi, por exemplo, a oposição do condado e funcionários estaduais que acabou "matando" a usina de Shoreham. Embora não possuam autoridade explícita para impedir a construção de um novo reator, as prefeituras podem se recusar a fornecer licenças para o uso da água de um rio para o resfriamento dos reatores, por exemplo, ou se recusarem a cooperar no planejamento de um esquema de segurança. Mas as companhias de serviços públicos esperam evitar essas armadilhas colocando seus reatores em locais onde são bem-vindos - preferivelmente ao lado de outros já existentes. Os moradores desses lugares sabem que a ampliação das instalações de uma usina vai criar empregos e gerar impostos. Além disso, eles acabaram se acostumando a ter reatores nucleares na vizinhança e não acham a idéia tão amedrontadora.

As companhias de serviços públicos também estão confiantes de que poderão construir novos reatores com uma maior rapidez. Muitas já encomendaram peças que demoram para ser fabricadas. Elas também convocaram parceiros que concluíram projetos de usinas nucleares dentro do cronograma e do orçamento em outros países. A Westinghouse, por exemplo, aponta para o currículo exemplar de sua controladora, a Toshiba, no Japão. De modo parecido, a GE juntou-se à Hitachi, outra empreiteira japonesa de respeito na área de usinas nucleares. Enquanto isso, a Areva olha para a série usinas bem-sucedidas que ela construiu junto com a EDF na França. Todas as três vendedoras afirmam que pretendem economizar tempo e dinheiro usando o maior número possível de peças idênticas para as diferentes usinas nucleares que vierem a construir nos EUA - ao contrário dos projetos encomendados do passado. Tudo isso deverá reduzir o tempo de construção para quatro anos, afirmam elas, o que permitirá aos primeiros reatores novos entrar em operação em 2015 ou 2016.

Mas os banqueiros ainda estão céticos. Eles temem que quando os novos projetos e os novos procedimentos da NRC forem testados, falhas ocultas vão aparecer. Afinal de contas, o primeiro dos novos projetos da Areva que está sendo construído na Finlândia está dois anos atrasado no cronograma e o orçamento estourou dramaticamente. Para evitar essas surpresas desagradáveis, a NRG Energy, uma companhia geradora de energia que está solicitando autorização para construir dois novos reatores no Texas, optou por um dos projetos mais antigos e já comprovados da GE, muito embora a GE insista seus novos projetos sejam mais baratos e de construção mais rápida.

David Crane, presidente da NRG, diz que os bancos simplesmente não estão preparados para emprestar dinheiro para a construção de usinas nucleares nos EUA sem um fiador extra. A lei conhecida como Energy Policy Act, que o Congresso aprovou em 2005, deveria proporcionar isso. Ela oferece quatro tipos diferentes de subsídios para novos reatores. Em primeiro lugar, ela garante até US$ 2 bilhões em seguros contra atrasos regulatórios e processos para os seis primeiros reatores que receberem licenças e começarem a ser construídos. Em segundo lugar, ela amplia uma lei antiga que limitava as obrigações das companhias de serviços públicos a US$ 10 bilhões na eventualidade de um acidente nuclear. Em terceiro lugar, ela fornece um crédito fiscal de US$ 0,018 por kWh para os primeiros 6 mil MW gerados pelas novas usinas. Em quarto lugar, e o mais importante, ela oferece garantias para um volume indeterminado de empréstimos para a construção de novos reatores nucleares e outros tipos de usinas geradoras de energia que utilizarem tecnologias "inovadoras".

O alcance dessas garantidas de empréstimos é motivo de uma grande controvérsia. Alguns políticos temem que os custos do programa possam disparar; outros reclamam que o Departamento de Energia, que vai administrá-los é muquirana demais. Enquanto isso, alguns especialistas financeiros afirmam que as regras, da maneira como estão esboçadas, não permitirão aos bancos concessores reempacotar e vender os empréstimos em questão, tornando-os menos atrativos. Há também alguma discussão sobre a proporção das dívidas de uma usina nuclear que deveria ser coberta: a lei diz que até 80% dos custos de construção, mas isso pode ser suficiente para cobrir todo o volume emprestado, deixando os bancos sem risco nenhum. Enquanto isso não for resolvido, os presidentes das companhias de serviços públicos insistem que novas usinas nucleares não serão construídas.

O destino do lixo atômico dos EUA, que o governo prometeu isolar por um milhão de anos, é outro problema não resolvido. Em tese, o Departamento de Energia está encarregado de cuidar de tudo isso. Ele exige que as companhias de serviços públicos separem um décimo de centavo de dólar para cada kilowatt-hora de energia nuclear gerada, para ajudar a bancar os custos do transporte do lixo nuclear para depósitos seguros, onde ele é estocado permanentemente. O problema é que ainda não existe nenhum desses depósitos.

A maioria dos países que usam a energia nuclear determinou que a maneira mais segura de armazenar o lixo atômico é sob a terra, bem fundo no leito rochoso, em contêineres à prova de água e ar. Mas nenhum deles construiu até hoje uma instalação do tipo. Os EUA chegaram a escolher um lugar para um desses depósitos, numa montanha chamada Yucca, que fica no meio de um a área no estado de Nevada onde já foram realizados testes com bombas atômicas. O Departamento de Energia planeja submeter um pedido à NRC no ano que vem para construir um depósito no local. A NRC, por sua vez, acha que a análise do pedido demorará três anos. Funcionários da Comissão dizem que a instalação fica pronta em 2017.

Mas Harry Reid, senador de Nevada, já prometeu esforço para impedir o esquema. Do modo como está, o Congresso vem cortando os recursos para o projeto de Yucca, que foi proposto pela primeira vez em 1978 e desde então já foi alvo de vários processos. Agora que Reid se tornou líder da maioria Democrata no Senado, as chances de o depósito ser construído caíram.

Para Dale Klein, presidente do conselho da NRC, a ampliação do uso da energia nuclear não deverá ter o ritmo reduzido por preocupações com o que fazer com o lixo atômico. A única coisa que poderia impedir agora o renascimento da energia nuclear, é um acidente grave numa usina já existente. Infelizmente, não seria o primeiro.