Título: Sob pressão dos EUA e ameaça de atentados, Iraque realiza eleição
Autor: De São Paulo
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2005, Internacional, p. A13

O Iraque realiza neste domingo sua primeira eleição após o fim do regime de Saddam Hussein, derrubado pela invasão militar americana em 2003. Será provavelmente a primeira eleição livre na história do país. O resultado mais provável é a formação de um governo de maioria xiita, o primeiro na história moderna num país árabe (o Irã é persa). Mas esse passo inicial rumo a um Iraque democrático, como desejam os EUA, ocorre marcado por incertezas. A resistência à ocupação americana declarou guerra à eleição e teme-se novos atentados sangrentos. Boa parte da população sunita deve boicotar a votação, o que pode gerar um governo sem legitimidade. E nada garante que o novo governo conseguirá pacificar o país e administrar as tensões internas desse importante produtor de petróleo. Serão eleitos 275 membros de uma Assembléia Nacional de transição. Essa Assembléia terá duas tarefas primordiais: elaborar uma Constituição e eleger o Conselho Nacional, que será formado pelo presidente do país e seus dois vices. O Conselho, por sua vez , terá de nomear o premiê e seu gabinete. Esse premiê é que será o chefe de governo, deixando o presidente do Conselho como chefe de Estado. Participam do pleito 84 partidos, cada um com sua lista de candidatos. Os partidos têm de apresentar obrigatoriamente um terço de mulheres em suas listas. Como a população é majoritariamente xiita (60%), espera-se que a composição da Assembléia reflita isso. Estima-se que a Aliança dos Iraquianos Unidos (AIU), composta por partidários do aiatolá Ali Sistani, mais respeitado clérigo xiita do país, fique com a maioria. O mais provável é que a AIU se alie com o atual premiê interino, Iyad Allawi. Ele lidera um partido xiita secular que atraiu até alguns membros do antigo partido Baath, de Saddam Hussein. A Assembléia eleita terá de apresentar, até 15 de agosto (prazo prorrogável por mais seis meses), uma Constituição. Se não houver atraso, a Carta vai a referendo em 15 de outubro. Se ela for recusada, dissolve-se a Assembléia e outra terá de ser eleita. Se ela for aceita, em 15 de dezembro haverá a eleição de um governo definitivo. Para vetar a Constituição, é preciso que dois terços dos eleitores em ao menos três províncias votem contra. Com isso, os três grandes grupos iraquianos - árabes xiitas (60% da população), árabes sunitas (20%) e curdos (17%) - terão na prática o poder de veto. Esse arranjo visa evitar que os xiitas governem a despeito dos demais grupos, o que poderia causar uma guerra civil e à divisão do país. Espera-se que mais de dois terços dos cerca de 14 milhões aptos a votar compareçam às urnas, pois a maioria dos curdos e dos xiitas apóia a eleição. A população iraquiana hoje está em 25 milhões. A grande novidade é a provável eleição de uma maioria xiita e, consequentemente, de um inédito governo árabe xiita. O xiísmo é um ramo minoritário no mundo islâmico, onde os sunitas são 85%. Durante o governo do sunita Saddam Hussein (1979-2003), essa minoria dominou a vida política e econômica do país. Ela se concentra majoritariamente no chamado "triângulo sunita", uma área do centro-oeste do país. Os curdos, que também são sunitas mas não são árabes, vivem principalmente no norte, em área contigua com importantes regiões curdas no Irã e na Turquia. Considerado o maior grupo étnico sem um país próprio, os curdos vêm usufruindo de diferentes graus de autonomia no Iraque desde a primeira Guerra do Golfo (1991). A Aliança Curda, uma frente de vários partidos, deve levar a maioria dos votos nas províncias curdas. Para a Turquia, a autonomia excessiva dos curdos iraquianos é fator de desestabilização de seu próprio território e mais um foco de tensão na região. Ancara já ameaçou invadir o norte do Iraque. A eleição ocorre num Iraque semidestruído e depauperado, apesar das enormes reservas de petróleo - o país 11% das reservas mundiais comprovadas, atrás apenas da Arábia Saudita, que tem 26%. A ONU calcula que um quarto dos iraquianos depende da distribuição de comida feita pelo governo. De todas as crianças com menos de cinco anos, 27% estão subnutridas. Muitos dos produtos de primeira necessidade só são encontrados a preços de mercado negro. Há escassez até de energia elétrica e de combustível. Mesmo sem dados confiáveis, estima-se que o desemprego varie de 25% a 50% da população economicamente ativa. É nesse ambiente que age a resistência à ocupação americana. O premiê Allawi inclusive já admitiu que há áreas no país que podem ser "inseguras demais" para a votação, apesar do reforço de segurança e do alerta geral das tropas estacionadas no Iraque. Atentados freqüentes contra oleodutos têm minado a exportação de petróleo. Entre os grupos que agem no Iraque destaca-se o liderado pelo jordaniano Abu Musab al Zarqawi, aliado do terrorista saudita Osama bin Laden no país. O grupo reivindicou os principais e mais mortíferos ataques suicidas que aconteceram no Iraque desde a queda de Saddam. O governo americano oferece US$ 25 milhões por qualquer informação que leve à morte ou captura do líder da resistência. Zarqawi alertou os iraquianos a não comparecerem à votação. Ele promete levar a morte "às urnas dos infiéis". A onda de atentados às vésperas das eleições visou as forças de segurança iraquianas (para evitar a formação de um Exército capaz de garantir a segurança do país) e alvos xiitas e curdos (para estimular a desagregação étnica). Críticos da política de Washington argumentam que não há segurança o suficiente para garantir eleições livres e que o processo de democratização imposto de fora pelos EUA dificilmente produzirá um governo estável, capaz de controlar as tensões no país sem o apoio militar americano.