Título: Investimento em educação básica transformou a cara da Finlândia
Autor: Saccomandi, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 06/09/2007, Especial, p. A12

AP Halonen lembra que país é um dos líderes em educação, com só 5 mi de habitantes. "Imagine o que faríamos com 190 mi" Se o Brasil busca inspiração para enfrentar dois de seus principais problemas, dificilmente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia visitar um lugar mais apropriado. A Finlândia, primeira etapa de sua viagem pelos países nórdicos, é uma espécie de campeã mundial de educação e tem a menor percepção de corrupção no mundo. Lula terá apenas pouco mais de 24 horas para descobrir o segredo do sucesso deste país de cerca de 5 milhões de habitantes no extremo norte do planeta.

Nesta entrevista ao Valor e à "Folha de S.Paulo", a presidente finlandesa, Tarja Halonen (pronuncia-se "tárria ralônen"), adianta algumas dicas: investimento maciço em educação (6% do PIB na Finlândia, sem contar pesquisa); transparência no governo; e fidelidade partidária. "É muito importante ter a coragem de alocar os recursos para a educação básica", ressalta ela.

A social-democrata Halonen, de 63 anos, não é uma finlandesa típica, pelo menos não como eles próprios se vêem: fechados, taciturnos, quase aborrecidos. A presidente é falante, brincalhona, expansiva. Talvez isso a tenha ajudado a se tornar a primeira mulher a presidir o país e também a se reeleger, em 2006, para um novo mandato de seis anos.

Halonen não governa a Finlândia. Essa tarefa cabe ao primeiro-ministro, o conservador Matti Vanhanen. Mas ela, como chefe de Estado, conserva atribuições em questões de segurança e política externa.

A presidente diz que não quer interferir em questões internas do Brasil. Mas não é à Finlândia que ela se refere quando diz que os políticos não podem trocar de partido como trocam de mulher. Halonen conhece bem o Brasil, onde esteve quatro vezes.

A presidente vê semelhanças ideológicas e pessoais com Lula. Ela vem de uma família operária e tem uma forte ligação com o movimento sindical (foi advogada da central sindical). "Conheço o presidente Lula de muitas oportunidades e gosto muito de cooperar com ele, porque temos idéias parecidas em muitas coisas."

Leia os principais trechos da entrevista concedida por Halonen na semana passada, no Palácio Presidencial de Helsinque.

Valor: Pergunta: Em quais aspectos a sra. tem posições comuns com o presidente Lula?

Tarja Halonen: Por exemplo, a respeito da globalização. A globalização existe e tem muitas boas oportunidades, mas também coisas difíceis. Deveria-se encontrar um equilíbrio entre as coisas boas e as ruins. Para um país individualmente é muito difícil participar da globalização. Eu e o presidente Lula temos idéias muito parecidas sobre como tratar esse assunto. Nos dois países chegamos à conclusão de que pode haver crescimento econômico com justiça social.

A Finlândia não tem muitos recursos naturais. O nosso hino nacional já diz que somos um país pobre, que não tem ouro. O recurso que temos é o nosso povo. Assim, investimos no nosso povo. Toda a pessoa tem de receber formação, educação, para ir tão longe quanto a sua capacidade permitir.

Os objetivos do presidente Lula a respeito da educação são muito parecidos com os que a Finlândia já tem há muitos anos, isto é, criar uma sociedade do conhecimento.

Não é suficiente que uma sociedade possua algumas pessoas muito capacitadas. Toda a sociedade tem de ter a possibilidade de formação durante toda a vida. Não basta que uma criança pobre receba alguma formação quando pequena. Ela tem de poder estudar o quanto quiser. E a Finlândia tem sido um dos países mais competitivos nas estatísticas internacionais com só 5 milhões de habitantes. Imagine o que faríamos com 190 milhões.

Valor: A experiência finlandesa na educação é muito positiva. O que pode ser feito para melhorar um sistema educacional que não é bom?

Halonen: A coisa primordial é que os fundamentos básicos da educação estejam sólidos. É muito importante ter a coragem de alocar os recursos para a educação básica e assim criar uma base sólida. E, dessa maneira, é possível criar uma justiça social, quando todas as crianças possam estar na escola e ficar o quanto necessário.

Primeiro, é preciso organizar o sistema básico de educação. Na Finlândia, temos áreas mais ricas que outras e áreas menos populosas, como a Lapônia, como vocês têm a Amazônia. É muito importante que as autoridades municipais tenham a responsabilidade pela educação, como na Finlândia, e que o Estado tenha de dar subsídios às áreas que mais precisam.

É muito importante a formação e os salários dos professores. É também importante que a educação no nível superior, a universidade e as instituições de pesquisa, estejam conectadas com a vida comercial, do trabalho. Tão logo uma instituição de pesquisa descobre alguma coisa, é preciso que isso esteja à disposição da vida real. A universidade na Finlândia é estatal, mas completamente autônoma.

Valor: A Finlândia é o país com o menor índice de percepção da corrupção. Como vocês controlam a corrupção?

Halonen: É sempre bom ter mecanismos de controle, mas o mais importante é que o governo seja aberto e que não haja lugar para a corrupção. O homem não é santo em lugar nenhum do mundo, mas se as decisões políticas forem tornadas públicas o mais cedo possível, então é impossível que a corrupção ocorra naquela decisão tomada.

Outra coisa importante é que os salários dos servidores públicos sejam altos o bastante para que eles não tenham de procurar mais dinheiro com corrupção. Eu percebo, e não estou falando do Brasil, que há funcionários públicos que ganham tão pouco que são obrigados a procurar dinheiro em outra parte. As pessoas que decidem têm de pensar que isso é uma tentação muito grande, se a pessoa ganha pouco e não pode se sustentar com o salário que recebe. Na Finlândia, os salários do setor público são suficientes para que as pessoas consigam viver. Claro que há pessoas que nunca estão contentes.

Valor: A Finlândia tem uma economia liberal, mas com forte presença do Estado. Que atividades devem ficar sob controle do Estado?

Halonen: Em todo o período independente, a Finlândia teve uma economia muito livre, mas há setores, como energia, nos quais o Estado ainda mantém uma posição. Na indústria e na agricultura também tivemos períodos nos quais o apoio do Estado foi considerável. Depois da Segunda Guerra, o Estado ajudou a indústria, a industrialização. Mas isso foi há 60 anos. A Finlândia nunca foi um país socialista. Mesmo no Parlamento, não tivemos sempre maioria de esquerda. Mas, como a Finlândia travou e perdeu duas guerras contra o vizinho (a Rússia), isso gerou uma responsabilidade econômica maior (do Estado).

O modelo da sociedade de bem-estar nórdico se baseia no Estado. O serviço social, de saúde, está todo construído com fundos públicos. Obviamente temos médicos privados, mas os hospitais são públicos, assim como toda a educação. Não temos universidade privadas. A imprensa sempre foi privada. Já a atividade de rádio e TV começou como pública, mas agora temos canais privados.

A necessidade de atuação do setor público ainda se dá na energia, que precisa de grandes investimentos, e também em infra-estrutura, como estradas e ferrovias. Historicamente o Estado teve um papel importante no setor madeireiro e na indústria, mas agora a tendência é que toda essa indústria passe ao setor privado. Mas o tempo todo se discute se o Estado deve se manter em setores que historicamente tem participação.

Valor: Em países pobres, o receituário neoliberal é impeditivo ao desenvolvimento social?

Halonen: É justamente o que temos advertido aos novos países que entraram na União Européia. Eles precisam ver o que fazem hoje e amanhã, mas precisam também enxergar mais para o futuro. Com o exemplo dos países nórdicos, podemos dizer que as decisões que repercutem por várias gerações não podem ser tomadas se não existe justiça social, igualdade social. E pensamos imediatamente na educação. As crianças não podem escolher os seus pais - meu marido diz que com isso não se cumpre o primeiro direito humano, o de escolher os pais. Por isso, o Estado precisa apoiar as famílias com crianças.

Valor: A situação da Amazônia preocupa a Finlândia? No que o seu país pode ajudar a preservá-la?

Halonen: Vocês que moram naquela região, os países que dividem a área da Amazônia, têm estudado muito esse tema nos últimos anos, e a Finlândia tem participado de projetos de pesquisa. Mas outro tema importante é como vivem as pessoas na região. Queremos que essas pessoas, que vivem em condições bastante primitivas ainda, possam ajudar a conservar o entorno. E queremos que as nossas empresas que se instalam naquela região cumpram as regras ambientais do Brasil para conservar e preservar de uma maneira sustentável a natureza local e, com isso, todo o planeta.

Um dos temas que vamos aprofundar durante a visita do presidente Lula é o da indústria relacionada à exportação de madeira. Queremos mostrar o que fazemos na Finlândia para preservar este recurso natural verde e como temos lutado pelo desenvolvimento sustentável.

Valor: Há temor na Finlândia pela devastação de floresta para a produção de etanol?

Halonen: Finlândia está experimentando diferentes combustíveis e estamos muito interessados nas experiências brasileiras.

Estamos preocupados, naturalmente, mas acho que os brasileiros também estão. Eu não quero me meter na política interna do Brasil, mas, se nossa experiência pode servir para algo, temos muita experiência em questões de posse e registro de terras. A maior parte das matas da Finlândia pertence ao Estado. Com a população indígena da Finlândia, os sami (lapões), no norte, negociamos a posse da terra, e nem sempre é fácil saber quem era o dono muitos anos atrás. A questão é o direito de exploração. Conheço bem a situação da Amazônia.

Valor: Olhando do ponto de vista do Brasil, a Finlândia parece o lugar perfeito. Não há corrupção, a educação é ótima, o país é rico. O que sobra para um político fazer aqui?

Halonen: Um bom político deveria trabalhar pelos seus princípios e pelos da sociedade. E também se submeter à (idéia de) que a democracia é aberta e que sempre haverá críticas.

Há duas coisas que parecem ser diferentes na Finlândia e no Brasil. Nós entendemos que uma pessoa possa se casar duas ou três vezes, mas mudar de partido é incompreensível. A pessoa que vota pode mudar de partido quantas vezes quiser, mas um político, se for num caso muito excepcional; mas mudar várias vezes não é aceitável.

Outra coisa: apesar de ser muito fiel à sua ideologia, ao seu partido, você é obrigado a colaborar com outros partidos, que pensam diferente. Hoje meu partido está na oposição (ao governo conservador), mas não quer dizer que daqui a quatro anos ainda estará. Isso faz com que as pessoas tenham mais vontade (assumir) de compromissos.

Valor: O que mudou no país com uma mulher na Presidência?

Halonen: As mulheres finlandesas têm todos os direitos políticos há mais de cem anos. A Presidência era o único posto que ainda não tinham atingido. Acho que a maior mudança durante a minha Presidência é psicológica. Nossas meninas hoje acham totalmente natural termos uma mulher como presidente. E, quando acabar meu mandato, o terei exercido por doze anos. Muitos jovens só terão visto uma mulher presidente. Às vezes tenho de responder aos garotos que sim, é possível que um garoto também chegue à Presidência. Já as meninas fazem piada, dizendo que não, que nunca mais teremos um homem como presidente. Aí a psicologia é muito importante. Tanto um garoto como uma garota podem chegar a ser presidente, ser o que quiserem. Só dependem dos próprios recursos.