Título: O frágil estado da saúde
Autor: Juan França, Martha San
Fonte: Valor Econômico, 06/09/2007, Eu&, p. 4

Franco Fontenele / O Povo / AE Pacientes esperam atendimento em hospital de Fortaleza: Brasil está em 125º lugar na classificação de desempenho no sistema de saúde global da OMS As histórias soam familiares: mães percorrendo hospitais à procura de atendimento para seus filhos doentes, jovens com diagnóstico de câncer e sem tratamento, pedidos de exames recusados por questões relacionadas a cláusulas minúsculas de contratos dos planos de saúde. Brigas na Justiça sobre pagamento de cirurgias e diárias em hospitais. São cenas dos telejornais brasileiros? Não, elas fazem parte do documentário "Sicko", de Michael Moore, em cartaz nos Estados Unidos, mas sem data marcada de lançamento no Brasil. Afora algumas características culturais americanas e o jeito Moore de fazer documentário criticando as mazelas do governo de George W. Bush - e colocando a questão na pauta das próximas eleições presidenciais -, os casos poderiam ter ocorrido em vários outros países, inclusive no Brasil.

"Sicko" ilustra o ponto de vista do cineasta sobre um sistema que lucra com a necessidade básica de todo ser humano, a de cuidar da saúde. Ele não aborda tanto os problemas dos 50 milhões de americanos que não têm seguro de saúde, mas os dos outros 250 milhões que, para ter acesso a hospitais e tratamentos adequados, pagam planos de saúde caríssimos oferecidos por empresas privadas. Segundo o cineasta, esses testemunhos foram obtidos depois da publicação, no ano passado, de um anúncio no seu site, o qual, em apenas uma semana, foi respondido por 25 mil pessoas interessadas em relatar o sofrimento por que passaram.

"São situações emblemáticas que poderiam ser discutidas também no Brasil", constata Ligia Bahia, do Laboratório de Economia Política da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela espera o lançamento do filme para promover debates em várias capitais com a participação de entidades médicas e órgãos de defesa do consumidor. A médica participou da pesquisa sobre planos de saúde promovida pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que analisa as principais falhas da regulamentação e o comportamento do mercado, nove anos após a promulgação da lei nº 9.656/98, também chamada Lei dos Planos de Saúde.

Bloomberg Michael Moore na região de Wall Street: estudo do IBM Institute for Business Value indica que muitos serviços de saúde do mundo se tornarão insustentáveis até 2015 se não forem reformulados "Nosso sistema sofre de uma americanização perversa: diferentemente dos Estados Unidos, nós temos uma realidade em que 25% das pessoas têm plano de saúde e 75% se valem do SUS. Com isso, nossos problemas são ainda mais sérios." A onda de greves de profissionais da saúde em vários Estados do Nordeste ilustra essa questão. Em todos os casos, os grevistas reclamam que ganham pouco e o sistema público de saúde precisa de mais dinheiro. O próprio ministro da Saúde, José Gomes Temporão, reconhece que os médicos e outros profissionais de saúde têm remunerações não compatíveis com sua carga de trabalho em vários Estados, embora reprove a forma como o movimento vem vem sendo conduzido.

O impasse na saúde não se resume ao tipo de administração do sistema. Em todo o mundo, os progressos expressivos na área, sustentados por equipamentos, tecnologia e procedimentos de custo alto, aliados ao aumento da longevidade da população e ao maior acesso à assistência médica, demandam parcelas cada vez maiores de recursos, por vezes indisponíveis, de governos, empresas e famílias. Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess), a média das despesas com saúde triplicou em relação ao produto interno bruto (PIB) no mundo inteiro. No Brasil, os gastos com a saúde pública e privada consomem por ano 7,6% do PIB, enquanto nos Estados Unidos esse comprometimento chega hoje a 15,2% e a projeção é que alcance 25% por volta de 2050. Ainda assim, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica os EUA em 37º lugar em desempenho no sistema de saúde global - o Brasil está em 125º lugar.

O estudo "HealthCare 2015: Win-Win or Lose-Lose?", realizado pelo IBM Institute for Business Value, indica que muitos serviços de saúde do mundo se tornarão insustentáveis até 2015 se não forem reformulados no modo como são financiados, prestados e avaliados. O estudo descreve problemas atuais, como os custos crescentes, baixa qualidade e os padrões inconsistentes de assistência médica, e reforça as dificuldades no futuro, quando esses fatores devem se combinar com um ambiente de mais globalização, consumismo, doenças crônicas e novas tecnologias e tratamentos.

Para José Cechin, ex-ministro da Previdência Social e superintendente do Iess, além de uma reformulação do sistema, será preciso repensar a saúde. "Os Estados Unidos gastam muito, mas vivem mal", afirma. "É preciso levar em conta hábitos de consumo da sociedade americana que favorecem obesidade, sedentarismo, tabagismo e outros fatores que dão origem a doenças crônicas." Não sem razão, o estudo da IBM sugere que as mudanças no sistema devem começar pela incorporação pela sociedade de hábitos saudáveis, como alimentação equilibrada, controle de estresse, prática de exercícios, idas preventivas ao médico e abandono do cigarro. E conclui que os prestadores de serviços de saúde precisam ampliar seu foco de assistência e incluir a administração mais abrangente de doenças crônicas, a previsão de longevidade e a prevenção de males.

A questão passa também pelo tipo de assistência governamental. Nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema é um dos mais privatizados do mundo. A saúde não é um direito universal e gratuito, como reza a Constituição brasileira. Somente aqueles considerados incapazes de competir no mercado, como os muito pobres, inabilitados e os idosos que não conseguiram poupar ao longo da vida, são objeto de ações específicas do programa Medicaid, de responsabilidade estadual. A população inserida no mercado formal de trabalho tem acesso a sistemas de seguro privado contratado pelas empresas. Os aposentados utilizam os serviços médico-hospitalares oferecidos pela rede vinculada ao programa Medicare, gerida pelo governo federal.

Como observou Michael Moore em seu documentário, entre os americanos vinculados a sistemas de planos e seguros de saúde privados, há uma variedade de cobertura, seja considerando o prestador, seja o tratamento coberto por cada tipo de plano. Além disso, os planos de saúde dispõem de uma série de mecanismos pelos quais buscam conter os custos e racionalizar a utilização dos serviços e insumos incorporados a cada tratamento. É o que se chama modelo de atenção gerenciada ("managed care"), responsável, como diz ironicamente o cineasta, pelo trabalho de identificação de pessoas que necessitam de tratamento - e pela garantia de que não o tenham, para que o lucro das seguradoras seja maior.

Por tudo isso, embora ofereça a maior porcentagem do PIB à saúde e tenha o maior gasto per capita do setor (US$ 5.711), os Estados Unidos deixam desprotegida uma parcela de 15% de sua população, que não tem acesso a nenhum tipo de serviço médico-hospitalar. O país executa apenas 44,6% dos seus gastos em saúde diretamente pelo setor público, enquanto a média observada por outros do mundo desenvolvido, como Reino Unido e França, por exemplo, é de 74% dessas despesas. O resultado é a maior taxa de mortalidade infantil (6,37 por mil) entre os desenvolvidos, ante 5% do Reino Unido, 4,63% do Canadá e 3,41% da França; e a menor média de expectativa de vida ao nascer: 77,2 anos (77,1 anos no Reino Unido, 78,5 na França e 79,2 no Canadá).

No Brasil, a situação é um pouco mais complexa. A Constituição de 1988, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), define que "a saúde é direito de todos e dever do Estado". Com isso, abriu a perspectiva de atendimento a parcelas da população antes completamente desassistidas. O resultado não foi pequeno. Atualmente, o SUS tem uma rede de 63.650 unidades ambulatoriais e de 5.800 unidades hospitalares, com 440 mil leitos. Sua produção anual é de 11,7 milhões de internações hospitalares; 1 bilhão de procedimentos de atenção primária à saúde; 153 milhões de consultas médicas; 2,6 milhões de partos; 251 milhões de exames ambulatoriais; 132 milhões de atendimentos de alta complexidade; e 23,4 mil transplantes.

Para sustentar todo esse complexo de assistência, o Ministério da Saúde deveria dispor, segundo foi discutido pelos constituintes na época, mas nunca regulamentado, de 30% do orçamento da seguridade social, o que daria, hoje, em torno de R$ 118 bilhões. No entanto, o ministério recebe apenas R$ 43 bilhões, sendo o orçamento do SUS em torno de R$ 18 bilhões, a serem gastos com procedimentos que abrangem desde a atenção básica até os de média e alta complexidades, como transplantes, terapia renal, quimioterapia e cirurgias cardíacas. Parece um montante expressivo, mas dividido por 140 milhões de brasileiros (excluindo os 50 milhões que têm plano de saúde) é igual a R$ 128 por pessoa por ano.

"Estudos do Banco Mundial afirmam que o SUS é ineficiente, mas, mesmo que se conseguisse aperfeiçoar a gestão, não seria possível atender tanta gente com esses recursos", diz Carlos Octavio Ocke Reis, economista com pós-doutorado na Universidade de Yale sobre sistemas comparados de saúde, recém-nomeado assessor da presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). "Boa parte dos problemas de gestão do SUS e de sua suposta ineficiência decorrem da ausência de recursos financeiros." Ocke Reis também chama a atenção para os problemas sociais brasileiros - muito diferentes dos americanos - que levam a população a procurar os hospitais. "Com os índices de pobreza, violência e desigualdade sociais do país, o atendimento nos hospitais públicos das grandes metrópoles não é o mesmo daquele dos países mais desenvolvidos", afirma.

Filas, atendimento em macas de pronto-socorro, espera de meses por um exame ou consulta, sucateamento da rede pública e má remuneração dos profissionais fizeram que o SUS, que deveria ser universal, se tornasse, na prática, destinado aos mais pobres, que não têm condições de adquirir planos privados. O restante da população paga, individualmente ou por meio de seus empregadores, as cerca de 2 mil empresas operadoras de planos de saúde, articuladas em modalidades assistenciais diversificadas, além de milhares de médicos, dentistas e outros profissionais, hospitais, laboratórios e clínicas, cujo faturamento, segundo dados da ANS, em 2006, foi da ordem de R$ 35 bilhões.

"Essas pessoas também se valem do atendimento direto dos serviços, quando descobrem que seus planos têm cláusulas de exclusão, como os dos americanos", constata Lígia Bahia, da UFRJ. "E até mesmo do SUS, como última opção, que, nesses casos, atua como um resseguro dos planos de saúde." Outros problemas tornam o sistema ainda mais perverso que o dos americanos, segundo a médica. No Brasil, os idosos não dispõem de um sistema de atendimento público como o Medicare nos Estados Unidos. Isso leva a distorções de preço, do ponto de vista do consumidor, e à exclusão de usuários pela imposição de reajustes elevados em razão da alteração por faixa etária. O Idec informa que há sete anos os planos de saúde lideram a lista de queixas do instituto. Em 2006, foram responsáveis por 23% das reclamações, deixando para trás serviços como banco e telefonia.

A existência desses dois sistemas trabalhando paralelamente provoca outros tipos de distorção. Como lembra Ligia Bahia, o SUS atende a todos os casos de urgência e emergência, como acidentes de trânsito, mesmo quando o paciente tem plano de saúde. Nesses casos, paga a conta que deveria ser da empresa e poucas vezes é ressarcido pelo atendimento. Outro desvio é a "fila dupla", quando as unidades do SUS, principalmente hospitais universitários, fazem parceria com planos de saúde. Os usuários dos planos costumam receber atenção diferenciada, "furam" a longa fila de espera do SUS de marcação de exames e consultas, passam na frente nas cirurgias e demais procedimentos, são atendidos e internados em melhores acomodações. Além disso, quando o plano de saúde nega um atendimento, como exames, remédios e procedimentos caros e complexos, é o SUS quem acaba pagando a conta.

Como diz Michael Moore em seu documentário, o sistema americano não funciona porque é gerido principalmente pelo lucro. Em países elogiados pelo cineasta como muito mais eficientes, como Reino Unido e Canadá, o gasto público com saúde é equivalente a 85,7% e 69,9% do total, respectivamente, sem falar em Cuba, onde a saúde é totalmente custeada pelo Estado. Além disso, nesses países, o atendimento é mais racional, havendo uma divisão transparente entre ações públicas e privadas, para evitar injustiças e desigualdades de tratamento.

No Brasil, os gastos públicos com saúde equivalem a 45,3% do total, pouco maior que nos Estados Unidos (44,6%). Isso significa que, apesar de a Constituição brasileira ter definido que a saúde é um direito social, procurando atender às necessidades de toda a população, mediante o acesso universal aos serviços, em termos relativos, o gasto público apresenta uma proporção similar à observada nos Estados Unidos, apesar das diferenças entre os países. Vale lembrar que a taxa de mortalidade infantil no Brasil é de 32 por mil nascidos vivos e a expectativa de vida chega a 71 anos.