Título: Aos 81 e sob ataque, Greenspan ofusca nova gestão do Fed
Autor: Borges, Robinson
Fonte: Valor Econômico, 17/09/2007, Especial, p. A14

Quase dois anos após ter se aposentado do Federal Reserve, onde passou 18 anos ocupando a cadeira da presidência, Alan Greenspan, 81 anos, vive um fenômeno que alguns acadêmicos qualificam de "síndrome de Rebecca", alusão ao filme de Alfred Hitchcok sobre a nova e tímida mulher de um viúvo que tem sua imagem feminina totalmente apagada pela força mágica da antiga esposa. Assim como no longa-metragem, a mítica presença de Greenspan tem ofuscado seu sucessor no banco central americano, Ben Bernanke, desde que ele assumiu o posto em janeiro de 2006. A manifestação aguda da síndrome ocorre agora, quando o mercado americano aguarda pela decisão de amanhã do Fed sobre o rumo das taxas básicas de juros - a primeira depois da crise de credito imobiliário de agosto -, mas os holofotes se voltam para o "maestro" Greenspan, que lança mundialmente hoje a autobiografia "A Era da Turbulência" (Campus/Elsevier, 640 páginas, R$ 74).

Endeusado por agentes do mercado e por milhões de americanos, Greenspan tem sido acusado por analistas econômicos de ser o grande vilão da atual crise de crédito, cujos claros sinais de estouro prometem contaminar a economia real e levar o país à recessão. Para muitos, ele teria sido leniente com a formação da bolha imobiliária ao cortar as taxas de juros além da conta, favorecendo a oferta de crédito barato. Greenspan refuta: "Gosto de críticas, mas não aprecio a má economia", afirmou, sempre com voz monocórdica e baixa, em entrevista ao Valor. "Queríamos combater uma deflação corrosiva."

Considerado pop star da economia, Greenspan é um homem acostumado a lançar tendências no mercado. Em fevereiro, quando previu que haveria 1/3 de chance de haver recessão na economia americana, esse saxofonista e clarinetista, formado pela prestigiada Julliard School, fez desafinar os mercados do mundo. As bolsas caíram. "A probabilidade de haver uma recessão agora é um pouco maior, não mais do que 20% superior do que naquela época", disse o homem que já trabalhou com seis presidentes - à frente do Fed ou como conselheiro econômico -, e hoje dá consultoria a diversas empresas e ao primeiro-ministro britânico, Gordon Brown.

Nas mais de 600 páginas do livro, escritas em banhos diários de banheira, Greenspan revela que se surpreendeu com o desempenho do presidente Lula na condução econômica do Brasil, elogia Pedro Malan e Arminio Fraga (que escrevem a apresentação e a quarta capa, respectivamente, na edição brasileira) e faz a defesa do livre mercado.

Também defende o uso mais intenso da energia nuclear e avalia que os esforços para reduzir o aquecimento global por meio dos créditos de carbono devem ser insuficientes, além de traçar um panorama para a economia americana em 2030, que deve crescer 75% acima dos dados atuais. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista, concedida em sua sala, num sóbrio escritório no centro de Washington.

Valor: Durante sua gestão no Fed, a economia americana teve desempenho impressionante. O senhor foi capaz de reduzir a inflação e de conduzir o país a duas das maiores expansões econômicas da história, com apenas duas recessões brandas. Mas alguns críticos dizem que esse desempenho teria sido um ganho de curto prazo com custos de longo prazo, como a atual crise das hipotecas. Essa crise é um efeito colateral de sua política monetária?

Alan Greenspan: Gosto de criticas, mas não aprecio a má economia. O boom imobiliário americano não tem nada a ver com a política monetária do Fed. Nem o boom que ocorreu no setor imobiliário da Austrália, do Reino Unido e da Irlanda. O que explica esse boom é o fim da Guerra Fria. Esse aquecimento do mercado é resultado do impacto que esse fato histórico teve no investimento de poupança global e no crescimento extraordinário em regiões que tinham suas economias sob planejamento central. Essas áreas tendem a ser grandes poupadoras. Com o deslocamento das forças de trabalho das economias comunistas para os mercados competitivos, esse excesso de poupança colaborou para reduzir as taxas de juros e os índices de inflação em quase todos os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Esse é o motivo pelo qual em quase todas as nações as taxas de juros estão na casa de um dígito, talvez a única vez que se constatou esse fenômeno desde o abandono do padrão-ouro. As taxas de juros caem, o preço das ações sobe; a capitalização do mercado imobiliário cai, os preços das casas sobem. Isso é uma verdade nos EUA e na Europa, onde você não precisa de política monetária para explicar o que está ocorrendo.

Valor: Mas o Fed tentou evitar que essa bolha prosseguisse nos EUA elevando as taxas de juros.

Greenspan: Tentamos conter a bolha ao elevar as taxas de juros das hipotecas em 2004 e não tivemos êxito. Repetimos a mesma operação em 2005 e obtivemos o mesmo resultado. A minha resposta aos críticos é econômica. Mas isso me deixa chateado, pois essas criticas são feitas por amigos meus. Não entendo como eles olham só para o fenômeno do boom imobiliário nos EUA e ignoram questões além da fronteira. O declínio das taxas de juros de mais longo prazo depois do fim do comunismo está associado ao aumento do índice preço/lucro tanto das ações quanto dos imóveis e de todos os ativos geradores de renda. Trata-se do boom econômico mais extraordinário que eu já vi na história.

Valor: O senhor disse que havia chances consideráveis de haver uma recessão na economia americana ainda neste semestre. Quais são as possibilidades de ela se concretizar com a crise do crédito no mercado imobiliário?

Greenspan: Eu disse duas coisas, e é preciso voltar ao mês de março. Eu disse que havia 1/3 de probabilidade de haver recessão nos 12 meses subseqüentes. O que significava que havia 2/3 de chance de não haver recessão. Dois dias depois eu fiz a segunda leitura da situação, a dos 2/3 de não haver recessão, e a imprensa disse que eu havia mudado de idéia (risos). Na verdade, a probabilidade de haver recessão agora e um pouco maior, não mais do que 20% superior ao que eu havia dito naquela época. A questão é que eu identifiquei um desequilíbrio, o risco é muito baixo e não necessariamente aumenta a possibilidade, pois eu já havia descontado dos números. O que eu não havia descontado era o declínio potencial dos preços. Mas o que esta por acontecer é incerto.

Valor: Esse boom extraordinário e o agravamento da crise dos subprimes não mostram que é necessário regular esses produtos exóticos do sistema financeiro?

Greenspan: Enquanto nós estivermos numa economia flexível, poderemos absorver o estouro das bolhas sem um impacto significativo. O problema é que não se pode prevenir crises como essas. Mas a economia americana tem grande resiliência, a capacidade de absorver rupturas e de se recuperar dos choques, por meios que jamais seria possível supor, quanto mais impor.

Valor: Não se podem prevenir crises ao regular as operações dos principais agentes do mercado, como private equity ou fundos de hedge, como querem os democratas?

Greenspan: As crises são fruto da natureza humana, que conduz as pessoas a cometer excessos. Não é possível conter essa condição do ser humano. Os CDOs (obrigações de dívida garantida por ativos) são imperfeitos, precificados de forma empobrecida, foram comercializados e tiveram muitas perdas. Os que não são comercializados em bolsa e suas negociações têm pouca transparência, estão diminuindo como instrumento importante desse boom. O mercado se auto-regula. Hoje o problema está mais focado na securitização de débitos hipotecários, instrumento relativamente novo. Ou seja, Wall Street diluiu o risco das operações para concessão de crédito imobiliário a pessoas de baixo poder aquisitivo. Ao perceber a alta demanda para as operações de securitização, começaram a pressionar os investidores a obter mais hipotecas de subprime. Sabendo que poderiam vender as securitizações muito rápido, criaram taxas escandalosas para atrair gente para esse negócio. Acho um crime esse episódio.

Valor: A Security Exchange Comission (SEC, CVM americana) está investigando casos como esses...

Greenspan: Acho que o mais importante é a Procuradoria Geral do Estado, mas a SEC pode entrar nesse caso, sim. De qualquer forma, nós temos esse grande problema de origem das hipotecas, que eventualmente vai mal, pois os devedores não conseguem honrar suas dívidas e nós sentimos as conseqüências. Esse cenário também significa que o subprime é apenas um símbolo de um problema maior, que é a ma avaliação dos riscos.

-------------------------------------------------------------------------------- É lamentável como os surtos de exuberância ocasionais induzem as pessoas a almejar o impossível" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: Muitos analistas econômicos defendem que antes de as bolhas estourarem é apropriado reduzir a liquidez do mercado.

Greenspan: Não é a forma como o mercado funciona. A menos que você leve a economia a um colapso, reduzindo o preço dos ativos, não podemos deter a alta do mercado de ações, das residências ou seja lá o que for. Em 1994, nós elevamos os juros, e o mercado cedeu. Desde que paramos de elevar as taxas de juros, tudo voltou a ser como era antes. Isso fez com que concluíssemos que nossa técnica de fazer política monetária não era adequada. É mais seguro esperar o estouro da bolha e depois usar as armas para dar assistência à economia. O risco de apertar a política monetária é alto, pois podemos estourar a bolha de confiança do investidor e, se o impacto for grande, desencadear grave contração. Tivemos perdas significativas no mercado de ações, como no caso da Nasdaq. Tivemos muitas mudanças nas variáveis financeiras, mas o crescimento econômico foi bom mesmo assim, como você mesmo apontou. A desregulamentação dos mercados financeiros, a maior flexibilidade do mercado de trabalho e a tecnologia de informação aumentaram a capacidade de acomodar o estouro das bolhas. Depois do 11 de setembro, a produção industrial, que já estava em declínio antes dos atentados, estabilizou-se em novembro. No mês seguinte a economia voltava a crescer. O que o Fed fez foi só acelerar a política iniciada antes de 11 de setembro, reduzindo as taxas de juros para estimular empréstimos e aumentar o consumo. Percebi que o modelo econométrico é economicamente incorreto. A euforia tem características diferentes das características do temor do estouro das bolhas. O sistema não trabalha de forma simétrica para os dois eventos. Períodos de expansão são muito maiores que os de contração. Os episódios de contração são mais curtos, porém mais profundos. Mas entendo que estamos vivendo num novo tipo de mundo, muito diferente, após a Guerra Fria. O número de pessoas que está deixando a economia sob planejamento centralizado significa uma força de mercado enorme. Ainda estamos no meio do processo.

Valor: Quais serão as respostas econômicas a esse processo?

Greenspan: Em algum momento, essa poupança dos países em desenvolvimento deve voltar aos níveis anteriores ao fim da Guerra Fria, as pessoas vão começar a consumir mais e haverá pressão inflacionária, pondo fim à era dos juros baixos.

Valor: O senhor argumenta que esse cenário conduziu o mundo às taxas de juros mais baixas da história. Mesmo assim o Brasil tem uma das taxas mais altas do mundo. Qual é a avaliação para que se mantenha juros tão elevados, apesar de a tendência mundial ser outra?

Greenspan: Só uma correção. Temos as taxas de juros mais baixas desde o fim do padrão-ouro. Bem, o consenso geral a respeito do Brasil é que vocês ainda estão pagando um preço histórico pelo colapso econômico de ter conduzido o país a uma taxa de inflação de 5.000% ao ano.

Valor: As taxas brasileiras estão, então, no patamar correto?

Greenspan: Eu não colocaria dessa forma. As pessoas que investem no Brasil é que me dizem isso. Eles acreditam nesse fato, o que é mais importante do que a minha opinião.

Valor: O senhor diz no livro que se surpreendeu com a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em que aspectos ele o surpreendeu?

Greenspan: Eu me surpreendi porque ele não fez o que prometera ao longo da campanha eleitoral. Parece ter compreendido que se cumprisse suas promessas, isso seria algo muito perigoso para a economia. Claramente, Lula está tentando manter o status quo. Mas em um país que tem a capacidade de criar uma inflação de 5.000% ao ano. Não sei como o país foi capaz de chegar a isso. Nos EUA, nós não temos de pagar um prêmio para as taxas de juros reais, mas vocês têm de fazer isso. É preciso pelo menos uns dez anos para as pessoas realmente acreditarem em vocês.

Valor: No Brasil e em muitos outros países, os bancos centrais usam o sistema de metas de inflação, e a avaliação geral é que ele tem sido bem-sucedido. Por que o Fed não recorre a esse sistema de forma transparente? Quais as desvantagens?

Greenspan: Em primeiro lugar, nós usamos o sistema de metas de inflação. Apenas não o publicamos. A razão básica para não divulgarmos as nossas metas é que há períodos em que os preços estão um pouco acima da meta, ou mesmo abaixo, e quando isso ocorre, o Fed, supostamente, teria de tomar uma altitude para enquadrar a inflação na meta. Mas nós também estamos cientes de que há outras variáveis importantes, como o nível de emprego sinalizando que vai aumentar ou a economia sugerindo que vai desaquecer. Isso influi na hora de o Fed considerar ou não viável, naquele momento específico, usar os instrumentos para adequar a inflação à meta. Um fator que continuará dificultando a tarefa do Fed é a dificuldade crescente de definir com clareza o que constitui a estabilidade do nível geral de preços. Se você tem uma meta de inflação pública, terá de explicar porque você não está se ajustando a ela, o que é embaraçoso para o Fed. No entanto, o mais importante é a credibilidade. Nos EUA não há evidência de que o banco central não tenha credibilidade, por isso, nossa inflação está sob controle.

Valor: O atual presidente do Fed, antes de sucedê-lo, se manifestou favorável à publicação das metas.

Greenspan: Agora ele pode fazer algo nesse sentido.

Valor: Muitos países em desenvolvimento têm acumulado reservas em moedas estrangeiras para evitar crises, como as dos anos 1990. O Brasil, por exemplo, tem US$ 160 bilhões em reservas. Que tipo de riscos esse tipo de política pode trazer?

Greenspan: Os países devem fazer isso para evitar as crises. Mas se esses países não esterilizaram suas compras de moeda estrangeira, haverá o crescimento da base monetária. Ao esterilizar suas compras, esses países têm de emitir bônus. Ao menos que você tenha um mercado de bônus viável, é difícil emitir títulos na mesma proporção das intervenções que são feitas pelos bancos centrais. A China, por exemplo, tem uma enormidade de dólares e uma quantidade grande dos chamados bônus de esterilização. Mas a conseqüência disso é o maior aumento do índice de preços ao consumidor da década, com 6,5%.

Valor: Qual é a sua perspectiva para a economia da America Latina. Seu livro critica o populismo econômico da região.

Greenspan: Se você me disser qual será a política de Estado dos países da America Latina, eu ficarei muito feliz em dizer qual será o Produto Interno Bruto (PIB) dessas nações. Mas antes de tudo é preciso ter confiança na política. Veja o exemplo de Hugo Chávez na Venezuela e de Felipe Calderón no México (que teve as eleições contestadas por André López Obrador, candidato da oposição).