Título: Os três anos da cédula de crédito bancário
Autor: Talavera, Glauber
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2007, Legislação & Tributos, p. E2

"Para quem tem de pagar na Páscoa, a quaresma é curta", diz a letra vigorosa de Machado de Assis em um trecho antológico do clássico realismo da obra "Dom Casmurro", donde se entrevê a miríade de escapadelas dos devedores que tentam, em terra brasilis, subverter a lógica que vincula direitos e deveres. A um triz do toque de Midas da chancela do "investment grade", o Brasil ainda dorme de olhos abertos para que os operadores dos mercados globais sejam lenientes com nosso cenário de excesso de recursos, procedimentos, prazos e instâncias judiciais que hipertrofiam os direitos dos devedores e fazem a alegria dos fígaros jurídicos, constituindo-se como aparato bastante generoso de rolagem das dívidas, inclusive do próprio poder público. Esta tábula rasa infelizmente está disseminada em todo o nosso enredado contexto social, o que faz com que as licenciosidades subam cada vez mais ao convés, mantendo-se cada vez menos nos porões das urbes e, conseqüentemente, cada vez mais nas barbas do capitão.

No entanto, mesmo diante destes paradoxos, o hálito da primavera de 2004 foi venturoso ao nos soprar a cédula de crédito bancário (CCB) por meio da Lei nº 10.931, deflagrando uma verdadeira revolução na dinâmica das atividades bancárias e financeiras e sedimentando um novo paradigma de segurança face à certeza e liquidez deste título de crédito cambiariforme, que fora erigido definitivamente à categoria de título executivo extrajudicial - tais como os previstos no artigo 585 do Código de Processo Civil - e que já havia sido delineado pelo Poder Executivo na medida Provisória nº 1.925, de 1999, e na Medida Provisória nº 2.160, de 2001, e, posteriormente, na Emenda Constitucional Nº 32, também de 2001.

A edição da Súmula nº 233 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 1999, asseverando que o contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de extratos da conta-corrente, não era um título executivo, foi a centelha que suscitou o interesse dos agentes naquele entendimento sumulado a partir do posicionamento da segunda seção da corte nos embargos de divergência do Recurso Especial nº 148.290, do Rio Grande do Sul, uma vez que, diante desta interpretação, o sistema financeiro não mais dispunha de nenhum mecanismo hábil para instrumentalizar seus contratos de cheque especial. Assim, concebida a partir da confluência entre vários fatores econômicos e sociais sobrepostos, a cédula de crédito bancário veio ao encontro da necessidade premente e urgente de inovação no cenário nacional, sobretudo considerando que os financiamentos bancários se tornavam cada dia mais caros e restritos face à insegurança jurídica evidenciada nas decisões judiciais que relativizavam a validade e eficácia das obrigações contratuais. As instituições financeiras, de um modo geral, enfrentaram uma robustecida resistência de devedores contumazes, tomadores de crédito sob a bastante disseminada modalidade de cheque especial, ou mesmo através de contratos de abertura de crédito, que, sem retornar o valor do principal do capital emprestado e sequer a parte incontroversa de suas dívidas, enfunavam o peito sem rubores e procrastinavam as ações executivas sob o ardil da alegação de ausência de título executivo líquido, certo e exigível.

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Nestes três anos de vigência da Lei nº 10.931, a cédula de crédito bancário, a par das já conhecidas cédulas de crédito rural, industrial, à exportação, comercial e de produto rural, consolidou-se como um título representativo de promessa de pagamento em dinheiro, que tem o condão de representar qualquer modalidade de operação bancária ativa, não circunscrevendo-se ao financiamento de atividades específicas e cujo tratamento normativo fora bastante mais acurado do que o dispensado às demais cédulas, eliminando as atecnias identificadas em cada uma delas. É bem verdade que aqui e acolá, vez por outra, alguns poucos ainda têm suscitado que a Lei nº 10.931, em razão de ter congregado em seu texto temários vários, teria subvertido o espírito do artigo 7º da Lei Complementar nº 95, de 1998, que trata da elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. A massiva maioria dos que conhecem a matéria, no entanto, tem atentado para a recomendação do teólogo espanhol Baltasar Gracián, que já no século XVII, no seu "Oráculo Manual", asseverava que "o entendimento é bom, mas não a bacharelice".

Entre os pontos de excelência do título, destaca-se o permissivo a financiamentos para a utilização parcelada mediante conta vinculada à operação, podendo ser movimentada por cheques, ordens, cartas ou outros documentos, na forma e tempo expressos na própria cédula, que pode ser emitida com ou sem garantia real, sendo regulada subsidiariamente pelas normas de direito cambial, inclusive no que concerne ao aval, sendo dispensável o protesto cambial para assegurar o direito de regresso contra endossantes e avalistas.

Oxalá o galardão de "investment grade", coincidindo com os três anos de vigência da lei que notabilizou a cédula de crédito bancário, suscite a instituição de mais mecanismos com objetivo de aparelhar os credores e de, concomitantemente, combalir e derruir supostas lacunas jurídicas que, pendentes de integração na teoria de Karl Larenz, favorecem a descompostura e insolência dos cultores do calote generalizado.

Glauber Talavera é advogado da área de direito bancário, mestre e doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e professor das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU)

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