Título: Livro e circulação do saber
Autor: Pinsky, Jaime
Fonte: Correio Braziliense, 16/01/2011, Opinião, p. 23

Um projeto de lei (7913/10) do ex-deputado Bonifácio de Andrade, de Minas Gerais, tramita atualmente no Congresso Nacional. Sua intenção é das melhores: permitir que os clientes de livrarias tenham acesso a todos os livros produzidos no Brasil. O projeto alega, e não sem razão, não ser a livraria um centro comercial comum, já que tem obrigações de caráter cultural. O ex-deputado, no arrazoado, afirma que a Lei 10.753/03, que instituiu a política nacional do livro, fala em "assegurar ao cidadão brasileiro o direito de produção, edição, difusão e comercialização do livro", mas "não criou mecanismos práticos" para que os autores consigam a circulação das obras. Para o deputado, obrigar as livrarias a ter todos os livros editados no Brasil seria uma forma de promover, da melhor forma, a circulação do saber e da imaginação.

Antes de mais nada, louve-se a boa intenção do ilustre descendente de José Bonifácio. Descarte-se, contudo, seu projeto, por inviável: a facilidade da produção editorial tem feito com que duas ou três dezenas de milhares de livros sejam feitos anualmente, seja pelas casas editoriais, seja por empresas produtoras de livros que se fantasiam de editoras, seja por autores que produzem valentemente os próprios livros. Seria impraticável, para as livrarias, mesmo as grandes, ter todos os livros que saem no país. O custo operacional de ter em estoque (seguramente, consignados, as livrarias não comprariam os livros) e controlar, a cada ano, mais de 20 ou 30 mil itens tornaria a vida das lojas um inferno: as pessoas não se dão conta de que livrarias, mesmo as pequenas, costumam ter mais itens do que grandes supermercados (muito mais do que lojas de autopeças, de armarinhos, de qualquer comércio que se imagine) e cada livro tem o próprio número e código de barras a partir do qual é cadastrado. Aumentar infinitamente o número de itens seria loucura.

Há mais. A ideia de ter seu livro em todas as livrarias do país estimularia todos os autores potenciais a escrever. E, em nosso país, lê-se pouco e se escreve muito. Muito e mal, por sinal. O aumento desordenado de livros publicados teria como única vantagem a valorização da profissão de ghost writer, escritor fantasma, aquele que escreve em nome dos outros, mas isso não seria o suficiente para aumentar o nosso PIB. Imagino a enxurrada de inutilidades que viria: biografias (e até imodestas autobiografias) de desconhecidos, livros de poemas prosaicos, romances piegas, relatos desinteressantes de viagens óbvias, teses rejeitadas por bancas examinadoras, propostas de volta da monarquia, maluquices de todo tipo.

Não estou dizendo que fora das editoras não exista vida inteligente. Por vezes aparecem obras interessantíssimas que o editor não publica por não acreditar no seu potencial. Editores erram. Livreiros também erram ao apostar mais em algumas obras do que em outras. Mas editoras sérias (e há muitas no Brasil) preocupam-se em estimular a produção, selecionar e publicar obras que a sociedade e o mercado desejam. Elas funcionam como filtro para o leitor não ficar soterrado diante de toneladas de papel indevidamente impresso. Um leitor experiente sabe quais selos de editoras são garantia de qualidade, um bom leitor sabe a que livraria se dirigir para encontrar o que busca.

Há outros argumentos contra o projeto, do modo como foi apresentado. Boa parte das livrarias independentes (que não fazem parte de redes) é especializada, não teria sentido obrigá-las a serem generalistas. As vendas pela internet, tanto pelos sites de livrarias quanto pelos das próprias editoras, atingem locais sem ponto físico de venda de livros e desempenham papel crescente na distribuição de livros. Quem quer acha o que quer (e, às vezes, até o que não quer).

Por seu lado, não concordo com os que consideram o projeto uma bobagem. Tenho certeza de que o ex-deputado estava preocupado com o problema da circulação do saber, apenas não foi feliz na solução encontrada. Manter uma linha contínua de crédito para pequenas livrarias, não algo ocasional, é bom começo para quem se preocupa com elas. Exigir de bibliotecas universitárias uma política de atualização de acervo, não só de compra para justificar o aval do MEC, também pode ajudar. A manutenção e a expansão da política de distribuição de livros para professores é essencial.

Mais ideias? Os livreiros possuem uma associação muito atuante que merecer ser ouvida, assim como diretores de redes de livrarias. Alguns editores também poderiam ser chamados. Perguntar a quem sabe é boa forma de obter boas respostas.