Título: Tempo de mudanças para a política monetária
Autor: Borges, Bráulio Lima
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2007, Opinião, p. A12

Num momento em que a economia brasileira caminha para fechar 2007 com crescimento da ordem de 4,5%, com perspectiva de manter ritmo semelhante em 2008, alguns analistas começam a apontar a necessidade de o Banco Central interromper por um longo período, ou mesmo reverter, o processo de flexibilização da Selic em curso desde setembro de 2005. A razão seria o rápido estreitamento do hiato do produto - isto é, da diferença entre o crescimento efetivo do PIB e seu crescimento potencial -, que estaria pondo em risco o cumprimento da meta de inflação em 2008 e 2009.

É importante esclarecer que, embora o conceito de crescimento potencial do PIB seja claro, a sua estimação empírica padece de sérias limitações. Em primeiro lugar, ela tem de basear-se em estimativas, sempre frágeis e discutíveis, relativas à depreciação do estoque de capital e à Produtividade Total dos Fatores (PTF) - variável que incorpora ganhos de eficiência da economia como um todo, bem como choques de oferta (como quebras de safra).

As estimativas do crescimento potencial também padecem do problema conhecido como estimação em "tempo real", associado aos fatos de que: 1) os dados do PIB somente são conhecidos cerca de 70 dias depois de findo o trimestre de referência; 2) na nova metodologia das contas nacionais, os números definitivos de um trimestre somente são conhecidos quase dois anos depois, podendo ser revistos várias vezes nesse ínterim; e 3) os filtros econométricos utilizados na estimação do PIB potencial são altamente sensíveis à incorporação de novas observações, especialmente nos resultados do final da amostra (que são justamente os que mais interessam à autoridade monetária). Não bastassem todas essas dificuldades para aquilatar o crescimento potencial "pelo retrovisor", projetá-lo é uma tarefa ainda mais complicada.

Mesmo que esses problemas pudessem ser ignorados, é importante apontar que o PIB potencial é dinâmico, alterando-se de acordo com a variação do número de pessoas ocupadas economicamente, do investimento e da produtividade.

O que temos visto no período recente, no Brasil, é justamente uma aceleração desses condicionantes. Depois de crescer 8,7% em 2006, o investimento se expandiu quase 11% no primeiro semestre de 2007. A produtividade na indústria - que constitui uma boa proxy para a PTF - avançou 3,8% no acumulado de janeiro a julho de 2007 (e se aproxima de 5% nas leituras mais recentes), contra 2,5% no ano passado. E não houve quebras de safra expressivas (como aconteceu com a soja e com o trigo em 2006). Portanto, se no ano passado o crescimento potencial do PIB situava-se, segundo estimativa do Ipea, em 3,8%, no primeiro semestre de 2007 essa taxa estaria se aproximando de 4,5%. Outro forte indício de que não está em curso um rápido estreitamento do hiato do produto é a evolução do Custo Unitário do Trabalho (CUT) na indústria, que vem em terreno negativo há vários trimestres, ao contrário do que se observou em 2004 (vale lembrar que muitos estudos têm apontado vantagens da utilização do CUT ao invés do hiato do produto na estimação de curvas de Phillips, por ser mais facilmente mensurável do que o PIB potencial).

-------------------------------------------------------------------------------- Aumento da penetração das importações vem reduzindo o impacto da atividade econômica sobre a inflação brasileira --------------------------------------------------------------------------------

Esse, contudo, é apenas um dos aspectos da discussão. Outro, talvez mais relevante, tem a ver com o impacto do hiato do produto sobre a inflação - ou seja, com a inclinação da curva de Phillips. Muitos estudos vêm destacando o fato de que modelos de projeção baseados em curvas de Phillips têm superestimado a inflação. Isso refletiria uma diminuição da inclinação dessa curva: para um mesmo hiato do produto, mantidas constantes as demais variáveis que impactam a dinâmica dos preços, a inflação tem se revelado menor do que foi no passado.

Entre os motivos levantados para explicar esse fenômeno estão o aumento da credibilidade das autoridades monetárias no combate à inflação (em especial na comparação com os anos 70) e, principalmente, a maior abertura das economias, com aumento da mobilidade de bens, serviços, capitais e mesmo mão-de-obra. No caso dos Estados Unidos, a criação do Nafta e a entrada de produtos asiáticos têm sido apontados como os principais fatores para explicar o comportamento benigno da inflação desde meados de 1990, período em que o PIB cresceu persistentemente acima do seu estimado ritmo potencial.

O que temos visto no Brasil desde meados de 2006 é um processo extremamente rápido de aumento da penetração das importações, resultado da combinação da apreciação cambial com o forte crescimento da demanda interna (de consumo e de investimento). Com efeito, a participação dos bens industriais importados na oferta doméstica de bens manufaturados, que de 1996 a 2005 oscilou na faixa de 15% a 17%, atingiu cerca de 21% no primeiro semestre de 2007, e caminha para fechar este ano e o próximo em 23% e 26%, respectivamente.

O analista que tentar estimar uma curva de Phillips para o Brasil com os dados até 2005 e projetar a inflação para 2006 usando os números efetivamente observados de atividade econômica, taxa de câmbio, preços de commodities etc, vai chegar a projeções bastante superiores à inflação observada. O mesmo vale para a estimação feita com dados até o final de 2006, cotejando-se as projeções com a inflação observada no primeiro semestre de 2007. A estimação recursiva da curva de Phillips aponta redução, desde meados de 2005, de cerca de 25% do valor do coeficiente atribuído à variável de atividade econômica (nesse caso específico, o NUCI da CNI). Logo, tudo indica que também estamos passando por uma mudança estrutural em parâmetros-chave para a política monetária.

Como destacam os livros-texto sobre política monetária, a incerteza de parâmetros tende a induzir os policymakers ao caminho da maior cautela nas suas ações. Não obstante, a mudança estrutural em curso no Brasil sinaliza ainda haver um razoável espaço para a continuidade da redução da taxa básica de juros, mesmo que a ritmo comedido.