Título: Reforçar o Mercosul deve ser prioridade de Cristina Kirchner
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2007, Internacional, p. A14

A forte expansão da economia argentina nos quatro anos do atual governo fez diminuir as disputas comerciais com o Brasil, e a relação bilateral, tanto política quanto econômica, está numa de suas melhores fases, como frisam sempre os presidentes Lula e Kirchner. Mas especialistas apontam que ambos os governos - o do Brasil, que se renovou no ano passado, e o da Argentina, que será eleito neste domingo, - estão em dívida com o projeto conjunto de integração, o Mercosul, que compartilham com Paraguai e Uruguai, e que está para incluir a Venezuela.

No auge das disputas entre as indústrias brasileiras e argentinas, em 2004, geladeiras, sapatos e frangos viraram armas de uma "guerra" declarada, com direito a ofensas pessoais - quando um dirigente industrial argentino chamou o ex-ministro brasileiro do Desenvolvimento, Luis Fernando Furlan, de "criador de galinhas", atacando sua suposta insensibilidade com o comércio de bens industriais.

Desde então, a lista de itens conflituosos do comércio bilateral permaneceu estável em pouco mais de 20 produtos. Porém, estes mesmos produtos, que antes representavam de 8% a 10% das importações, agora não passam de 6% a 7%, porque o comércio entre os dois países cresceu significativamente, ao contrário do que indicava o "clima" beligerante.

"Os conflitos não desapareceram mas se restringiram a muito poucos produtos, e os acordos de salvaguarda estão funcionando bem", avalia o economista e ex-secretário de Indústria da Argentina, Dante Sica, sócio da consultoria Abeceb.com.

Mas, ao mesmo tempo em que resolveram suas pendências bilaterais, tanto Brasil quanto a Argentina descuidaram do Mercosul, afirma o especialista em relações internacionais, Felix Peña, ex-subsecretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia da Argentina e ex-membro titular do Grupo Mercado Comum do Mercosul (1998-99).

Para estes dois especialistas em temas comerciais e de integração, com a eleição do novo presidente da Argentina no próximo domingo, chegará a hora de os dois sócios maiores do bloco saírem do discurso e reafirmarem o que pretendem da integração. "Creio que será necessário dialogar mais a fundo sobre o que queremos fazer com o Mercosul", afirmou Peña.

Para ele, o Mercosul tem hoje um problema de credibilidade. Ao mesmo tempo em que se supõe que seja um mercado integrado, com 311 milhões de habitantes, há tantas barreiras não-tarifárias e licenças não-automáticas, impostas igualmente pelo Brasil e pela Argentina, que um investidor com visão regional não se sentiria seguro em colocar seu dinheiro nos países do bloco.

Sica acrescenta que, sem medidas concretas de reforço à integração, os países-membros sub-utilizam a capacidade de enfrentamento da questão-chave atual, que não é a importação de um a outro mercado, mas sim a concorrência predatória dos asiáticos. "Brasil e Argentina têm hoje uma ameaça comum que é a China", diz Sica, frisando que, em sua opinião, está na hora de encontrar uma "política de defesa comercial comum".

Ele acha que se deveria avançar também numa política de defesa da concorrência comum, para fazer frente aos movimentos de gigantes multinacionais, decididos nas matrizes e que afetam a vida de todos na região, por exemplo nas áreas de telecomunicações, siderurgia, mineração e tecnologia.

Embora o ritmo da integração tenha diminuído nos últimos dois anos, coincidindo com os processos eleitorais no Brasil e na Argentina, o economista paraguaio Fernando Masi, da Rede de Pesquisas Econômicas do Mercosul, identifica um período muito mais longo de enfraquecimento do projeto.

Em um estudo recém-concluído, Masi aponta que um movimento crescente de acordos de livre comércio em nível mundial, a partir do ano 2000 - resultado de uma mudança de estratégia na política comercial dos principais países desenvolvidos - provocou uma desaceleração dos processos de integração.

O Mercosul, diz Masi, foi o que sofreu maiores perdas em seu comércio intra-regional. Enquanto o comércio intrazona do bloco cresceu apenas 5% no período de 1990 a 2005, o comércio extrazona cresceu 135%. Dados do governo argentino, atualizados até 2006, mostram um crescimento de 26% no comércio intrazona e 172,2% do extrazona (veja quadro).

"Os governos falam em reforçar a integração, mas na prática cada um tem sua política individual direcionada ao mercado internacional", critica Masi. Segundo ele, o fato de fazer acordos e aumentar o comércio com outros países não é incompatível com a integração. No entanto, frisa, deveria haver maior complementaridade e estratégias conjuntas para chegar a esses acordos.

Masi, assim como outros especialistas, afirma que o governo Kirchner foi pouco ativo na questão da integração, tanto quanto o Brasil, embora a Argentina tenha a desculpa de que estava nestes últimos cinco anos tentando se levantar de uma crise econômica sem precedentes.

Eles esperam que Cristina Kirchner - que, se as pesquisas de intenção de voto estiverem corretas, será a próxima presidente da Argentina - tende a rever essa omissão de política externa de seu marido, o presidente Nestor Kirchner. "Ela vai manter uma política mais pragmática com os países da região e buscar uma saída 'atlântica´ com o Brasil", afirmou o consultor político Ricardo Rouvier, referindo-se a uma aproximação conjunta Brasil-Argentina à União Européia.