Título: Um filme de terror
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 15/01/2011, Brasil, p. 7

Em meio ao desespero, familiares se aglomeram em frente a IMLs improvisados para tentar enterrar seus mortos. Estado dos corpos dificulta identificação

As cenas de horror vividas pela região serrana do Rio, vítima do maior desastre natural da história do país continuam a impressionar, mesmo três dias depois da tempestade que arrasou a área. Uma multidão se mantém, desde quarta-feira, na porta do prédio onde foi montado um improvisado necrotério, no bairro do Alto, perto do centro da cidade de Teresópolis, em busca de notícias de parentes desaparecidos. Mesmo assim, cerca de 50 corpos não haviam sido identificados até a noite de ontem. Por questão de saúde pública, todos foram congelados em três caminhões frigoríficos estacionados na porta do local. Antes, porém, as equipes fotografaram cada cadáver para que o familiar possa identificá-lo. Além do avançado estado de decomposição, a falta de parentes vivos que possam fazer o reconhecimento dificulta a liberação dos corpos.

¿Em Teresópolis, que é uma cidade provinciana, as famílias moram no mesmo bairro. Tem gente que perdeu 15, 20 parentes¿, conta Antonio Alencar, voluntário no IML. Luiz Carlos só saiu da porta do necrotério de Teresópolis, desde quarta-feira, para enterrar a mulher. Agora, o ajudante de obras espera notícias do corpo da filha, da mãe e de duas sobrinhas. ¿Se eu tivesse lá, teria morrido também¿, conclui o homem de 41 anos, que estava trabalhando em Petrópolis no dia da tragédia. Cada vez menos esperançoso, Luiz Carlos gostaria de pelo menos poder enterrar os parentes. ¿Minha menina só tinha nove anos¿, diz.

Teste de DNA O cheiro ruim vindo do local improvisado como necrotério era tanto que as equipes distribuíram máscaras para familiares que aguardam notícia de algum parente. Médicos e peritos vieram do Rio de Janeiro para iniciar análises pela arcada dentária. Isso porque o estado dos corpos tem impedido o reconhecimento visual e também o exame das digitais. Em um caso ocorrido na quinta-feira, dois homens reivindicaram o corpo de um garoto como filho. Sem consenso, o cadáver terá de passar pelo exame odontológico. Testes mais avançados de DNA ainda não estão descartados, porém, por serem mais caros, serão adiados o quanto for possível.

Os ânimos, antes de desespero e consternação apenas, começam a ficar mais exaltados. Nervosa por não conseguir informações a respeito do corpo do irmão, Cláudio de Oliveira cobrava explicações. ¿Depois de uma burocracia danada, não sei onde está meu irmão. Ainda tenho 16 parentes próximos para localizar.¿

O bairro de Teresópolis que a água levou

Teresópolis (RJ) ¿ Faltam água, luz, comunicação, comida e esperança em Vieira, bairro rural de Teresópolis e um dos mais atingidos pelas chuvas. Distante cerca de 50km do centro da cidade, o local recebeu uma equipe de resgate, ontem, mas nenhum sobrevivente foi encontrado. Por pouco Osmar de Sousa Neves não foi levado pela corrente de água que o surpreendeu na madrugada de quarta-feira. ¿Liguei para minha filha para avisar que o rio tinha subido, depois foi só piorando e não consegui mais falar com ninguém¿, lembra o senhor de 69 anos. Apesar das dificuldades, Osmar ainda conseguiu salvar uma vizinha, tirando-a pela janela.

Mas muitos amigos e conhecidos foram mortos pela enchente em Vieira. Uma lista de pelo menos 56 desaparecidos circula pelo local. O Corpo de Bombeiros resgatou dois corpos. Moradores à procura de parentes se decepcionavam ao abrir a lona preta onde o cadáver estava. Alguns curiosos também se aproximavam, sendo repreendidos pelos bombeiros. Eliane Pinheiro da Cruz, 44 anos, não perdeu parentes, apesar de a casa ter sido destruída. Ela não consegue, desde a tragédia, entrar em contato com parentes em Guarulhos, próximo à capital de São Paulo. ¿Não temos nada, telefone, internet, água, estamos ilhados¿, lamenta. O cenário no local (fotos acima) é de destruição completa.

Salvo por uma viagem que fez com os dois filhos, o motorista de caminhão Gilmar Lourenço do Canto também lamenta todo o estrago que a chuva causou na casa reformada há menos de um mês. ¿Troquei o telhado e pintei para o Natal. Mas veja o que sobrou. Estou aqui cuidando dos destroços¿, diz o homem de 40 anos, com ar irônico, enquanto chora. Ele conta que sempre morou, desde o nascimento, no bairro. E nunca imaginou ver o rio que fica próximo à sua casa tão alto. ¿Já tivemos problemas aqui, mas nunca houve risco para a população. Vieira acabou¿, diz.

Gilmar, que transporta verduras de caminhão, teme a falta de dinheiro, já que desde quarta-feira não roda. A preocupação se repete entre quase todos os moradores de Vieira, que se sustenta da atividade agrícola. Enquanto os órgãos do estado não dão conta de remover toda a lama e entulhos do local, a população conta com a solidariedade alheia. A igreja Santa Luzia reúne todos os donativos levados pela Defesa Civil. Os atendimentos médicos também têm sido feito lá dentro, já que a estrada está cheia de barrancos. As vacinas estão sendo racionadas, só para idosos e crianças que tenham se machucado. ¿A gente entende, mas fica com medo de pegar tétano ou hepatite¿, afirma Osmar. (RM)