Título: ANP e pequenas cidades brigam por royalties
Autor: Mandl, Carolina; Góes, Francisco
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2007, Brasil, p. A6

Uma nova onda de liminares ligadas à produção de petróleo e gás natural começou no Brasil. As ações são movidas por municípios, sobretudo no Nordeste, que entram na Justiça para receber parte dos royalties da produção de petróleo e gás distribuídos mensalmente pela Agência Nacional do Petróleo (ANP).

Só em outubro a ANP pagou R$ 13,6 milhões em royalties a 33 municípios que conseguiram liminares na Justiça com o argumento que possuem instalações marítimas e/ou terrestres de embarque e desembarque de petróleo ou gás natural. Destes, 25 ganharam a liminar com o argumento de que possuem uma "city gate" (estação de transferência de gás), e outros porque possuem gasoduto ou parques de tancagem.

O montante pago representa 6% dos R$ 230 milhões pagos neste mês aos cerca de 900 municípios que receberam royalties no país. Desde 2002, quando surgiram as primeiras ações judiciais do gênero, até outubro de 2007 a ANP pagou cerca de R$ 380 milhões em royalties para municípios amparados em liminares. O entendimento técnico da ANP é de que este pagamento é indevido. Dos 33 que ganharam liminares, 19 nunca receberam royalties antes de 2002 - quando os critérios definidos em lei passaram a ser adotados para o pagamento dos royalties.

A discussão provocou uma batalha jurídica na qual a cada mês surgem novas liminares de municípios e a ANP, por meio de procuradores federais dos quadros da Advocacia Geral da União (AGU), tenta cassar decisões concedidas pelos tribunais nos Estados. Em setembro, havia 31 municípios com liminares. Um mês depois o número passou para 33. Entraram na lista Bayeux (PB), São Gonçalo do Amarante (RN) e Estancia (SE). A ANP conseguiu tirar da lista Santo Amaro das Brotas, no Sergipe.

A discussão entre a agência e os municípios tem origem na regulamentação da lei do petróleo (de 1997) por meio da portaria ANP 29, de 2001. A portaria estabeleceu os critérios a serem adotados, a partir de 1º de janeiro de 2002, para a distribuição aos municípios do percentual de 7,5% sobre a parcela dos royalties que exceder a 5% da produção de petróleo ou gás natural de cada campo. Segundo a portaria, a distribuição tem ser feita aos municípios afetados pelas operações de embarque e desembarque de petróleo ou gás natural.

Antes, os pagamentos eram feitos pela Petrobras e os critérios não estavam definidos em lei. Vários municípios que vinham recebendo royalties antes de 2002 e perderam o direito a estes recursos com a portaria 29, foram para Justiça tentar reaver o pagamento. A maioria destes municípios recebia royalties por terem "city gates".

Para a ANP, contudo, o que determinou a redução no número de municípios com instalações de embarque e desembarque aptos a receber os royalties não foi a portaria 29, mas o decreto 1/91 que regulamenta o pagamento da compensação financeira pelo resultado da exploração de petróleo ou gás natural instituída para Estados, Distrito Federal e municípios pela lei 7.990/89.

No artigo 19, parágrafo único, o decreto 1/91 diz que consideram-se instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque de petróleo ou gás natural, as monobóias, os quadros de bóias múltiplas, os píeres de atracação, os cais acostáveis e as estações terrestres coletoras de campos produtores e de transferência de óleo bruto ou gás natural. Com base neste argumento, a ANP vem tentando cassar as liminares de municípios que querem receber royalties por possuírem como instalações "city gates", gasodutos, refinarias e parques de tancagem que não estejam ligados diretamente à produção de óleo e gás.

"Quanto mais municípios (recebendo royalties), menos dinheiro cada um vai ganhar", diz Victor de Souza Martins, diretor da ANP. A distribuição dos royalties, antes feita pela Petrobras, foi assumida pela ANP a partir de 6 agosto de 1998, quando foram assinados os primeiros contratos de concessão entre a agência e a estatal.

Recentemente, Martins reconheceu, em um ato público da ANP, que a agência está preocupada com o que pode ser uma "nova indústria de liminares". Só este ano foram concedidas 17 liminares - em 2006, foram quatro. Das 33 liminares, 26 delas são de seis Estados do Nordeste.

Ricardo Sampaio, procurador do Recife, reclama que a ANP está pagando uma quantia inferior à depositada até 2002. " Naquela época, ganhávamos cerca de R$ 150 mil por mês. Agora, temos R$ 50 mil, sendo que municípios vizinhos menores recebem mais do que isso " , diz ele. A disputa em relação aos valores está na Justiça. O argumento que Recife utilizou foi que a ANP não tem poderes para modificar a lei por meio de uma portaria, por isso o gasoduto que a cidade possui daria o direito a receber os valores. " A questão é se a agência tem poderes para afrontar a lei " , diz Sampaio.

Antônio Ricardo Accioly Campos, advogado de Vitória de Santo Antão e Jaboatão dos Guararapes, municípios pernambucanos amparados por liminares, é enfático: " Nesses casos, estamos apenas restabelecendo um direito " , afirma.

O Valor teve acesso a quatro processos de vários municípios do Nordeste que entraram com liminares para receber royalties. Em geral, o argumento que os municípios usam é que a ANP não pode legislar. E, portanto, a portaria ANP 29, que regulamentou a lei do petróleo de 1997, não pode se opor à lei 7.990, de 1989, que estabeleceu o pagamento de royalties. Esse argumento tem sido aceito. O desembargador Marcelo Navarro, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, afirma no processo do município de Rosário do Catete, de Sergipe, que conseguiu a liminar: " À primeira vista a agência não teria competência para extrapolar o conceito descritivo de uma instalação terrestre de embarque e desembarque " . Com base no argumento, ele concedeu a tutela.

A briga jurídica entre a ANP e os municípios pode ter novas nuances, pois a agência agora alterou os critérios de distribuição dos royalties, o que fez o o valor pago aos municípios com liminares cair, de R$ 15,7 milhões, em setembro, para 13,6 milhões, em outubro. Pela nova metodologia, municípios com liminares passaram a receber, em outubro, menos royalties do que recebiam pela fórmula antiga. Em contrapartida, os outros municípios passam a receber mais.

Em outubro, cada um dos 17 municípios que possui instalações de embarque e desembarque para movimentar petróleo e gás natural de origem marítima, de acordo com o definido na lei de 1989 e no decreto que a regulamentou (de 1991), recebeu R$ 1 milhão em royalties da ANP (o montante seria de R$ 784,2 mil para cada um pela fórmula antiga). Já o grupo de municípios apoiados em liminares recebeu, no mês, R$ 459 mil cada um - R$ 605 mil pelo critério anterior.

Os royalties pagos sobre o petróleo e o gás produzidos em mar são significativos porque 85% da produção petrolífera brasileira tem origem lá. "Há zelo da agência em atender as decisões judiciais e a metodologia aplicada também explicita o ponto de vista técnico da ANP sobre o que é a correta aplicação da lei", diz Martins, da ANP.