Título: Entre a inflação e a recessão
Autor: Wolf , Martin
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2007, Opinião, p. A15

"Lamento dizer que a independência do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) não é eterna. A autonomia da Federal Open Market Comission (FOMC) é atribuída por lei e pode ser retirada por lei", diz Alan Greenspan em "A Era de Turbulência".

Para os críticos, agora é a "opção Bernanke" - a convicção de que, como durante o comando de Alan Greenspan, o Fed sempre oferecerá socorro a Wall Street. A entusiasmada reação dos traders ao corte de 50 pontos base na taxa de juros de curto prazo poderia justificar essa suspeita. Mas salvar Wall Street de sua insensatez não é o objetivo do Fed. É um (lamentável) subproduto da tentativa de cumprir sua missão.

Seria maravilhoso se os responsáveis por essa mais absurda das crises financeiras pudessem ser punidos sem prejudicar milhões de espectadores inocentes, mas isso é impossível. Se o Fed cumprir sua missão, ajudará o setor financeiro. Este, certamente, se recuperará e então encontrará alguma nova, criativa e atualmente imprevista maneira de produzir uma crise, possivelmente maior, daqui a alguns anos. Então, o mercado torcerá para que o Fed faça seu trabalho conforme o desejo de Wall Street: salve a economia salvando o mercado financeiro. Risco moral é algo relevante, mas apenas para os pobres.

Mas terá sempre o Fed condições de agir assim? A resposta "não" é tão clara! A solução para cada crise lança as sementes da crise seguinte. Assim, o alívio monetário determinado pelo Fed após as crises no Leste Asiático e na Rússia em 1997 e 1998 contribuíram para a subseqüente bolha no mercado acionário. O enorme alívio monetário após o estouro da bolhas nas bolsas em 2000 contribuiu para o recente boom no mercado habitacional. A turbulência nos mercados financeiros produzida pelo fim daquele boom resultou no grande corte nos juros da semana passada. A questão, portanto, é: a que levará isso?

A resposta possível seria um verdadeiro pesadelo: a volta da inflação. Durante o último quarto do século passado, o Fed desfrutou um ambiente mundial benigno: inflação em queda e depois baixa; e juros nominais e reais em queda, e depois baixos. A credibilidade da inflação baixa explica a "opção Greenspan", que é, em larga medida, um rótulo para designar a capacidade do Fed de modificar os juros em resposta a choques sem qualquer receio de conseqüências inflacionárias. Essa liberdade deu ao Fed a independência e autoridade que Ben Bernanke herdou do predecessor. Mas sua independência, como assinalou Greenspan, não é "imexível". Todos os bancos centrais são criaturas da política.

Esse tipo de preocupação parecem remotas hoje. É por isso que a comissão do Fed que determina os juros pôde chegar à decisão unânime de reduzir os juros "para ajudar a prevenir algumas das conseqüências danosas sobre a economia real que poderiam, de outra forma, emanar das perturbações nos mercados financeiros" (Federal open market committee statement, September 18 2007, www.federalreserve.gov). Mas, sabiamente, a Comissão também "avalia que persistem alguns riscos inflacionários, e continuará a monitorar cuidadosamente a evolução da inflação". O Fed parece ter rejeitado a recomendação de Martin Feldstein, da Universidade Harvard, durante a conferência monetária deste ano em Jackson Hole: de que o Fed deveria reduzir os juros em até um ponto percentual e aceitar o risco de uma escalada da inflação. Mas o Fed também aceitou parcialmente o caminho recomendado.

-------------------------------------------------------------------------------- Se portadores de dólares concluírem que a moeda americana deixou de ser segura, desovarão a moeda e ativos lastreados no seu valor --------------------------------------------------------------------------------

Até que ponto, então, são significativos os riscos inflacionários, e por que poderiam ser importantes? Agora esses riscos parecem, efetivamente, ainda pequenos. A inflação plena nos preços ao consumidor, ano sobre ano, caiu para apenas 1,9% em agosto, ligeiramente abaixo do denominado "núcleo da inflação", que ficou em 2,1%. Dada a probabilidade de um desaquecimento significativo nos gastos do consumidor, é provável que a economia estará debilitada. O Goldman Sachs sugere que o crescimento anualizado ficará entre 1% e 1,5% nos próximos três trimestres. Para 2008, o Goldman prevê um crescimento de apenas 1,8%, bem abaixo da tendência. Se, como parece provável, o consumo diminuir substancialmente, a economia ficará ainda mais debilitada.

Isso implica que o Fed poderia ignorar a inflação? Não, porque dúvidas sobre seu engajamento em preservar pelo menos o poder de compra doméstico da moeda tornará sua missão bem mais difícil. Essas dúvidas são possíveis, como revelaram as reações ao corte na semana passada. As bolsas de valores deram um salto. Porém, o mesmo aconteceu com os juros de longo prazo, com as expectativas inflacionárias (evidenciadas na disparidade entre os títulos do Tesouro convencionais e os vinculados a índices) e com o preço do ouro. O dólar desabou para seu mais baixo nível frente às moedas mais importantes. Além disso, o custo unitário da mão-de-obra cresceu 4,9%, ano sobre ano, no segundo trimestre de 2007, devido à queda no crescimento da produtividade.

É verdade que nada disso é ainda dramático. A queda no valor do dólar fora dos EUA é inevitável. Em vista da necessidade de compensar a fraca demanda interna com um salto nas exportações líquidas, a desvalorização do dólar parece desejável. Bernanke pode dizer que um dólar valorizado é bom para a economia americana, mas essa é uma aspiração não amparada em alguma política, sendo, portanto, uma afirmação enganosa, ou mesmo sem sentido. A 4,6%, os juros pagos por títulos do Tesouro com maturação em 10 anos estão baixos, ao passo que as expectativas inflacionárias estão simplesmente de volta onde estavam em julho. Quanto ao preço do ouro, certamente não reflete unicamente a preocupação com o dólar.

Apesar disso, o Fed não pode parecer ignorar os riscos de inflação, exatamente porque as tentações de fazê-lo são tão evidentes. Internamente, um enorme número de famílias extremamente endividadas vê a queda nos preços de seus principais ativos: suas residências. Um nível de preços mais elevado é, assim, uma maneira muito menos dolorosa de restaurar o equilíbrio do que a queda nos preços nominais. Externamente, os EUA são um enorme devedor líquido. Uma grande desvalorização do dólar é, portanto, uma maneira muito menos dolorosa de transformá-lo num credor líquido do que incorrer em superávits em conta corrente, uma vez que seus passivos são denominados em dólar.

Em vista desses fatos, será uma luta incessante para o Fed convencer aqueles que apostaram no dólar como uma moeda segura. Esse não é um risco remoto. Nos mercados financeiros, o futuro é agora. Se portadores de dólares concluírem que a moeda americana deixou de ser um símbolo seguro de valor, eles desovarão tanto a moeda como ativos dependentes do valor futuro do dólar. Se isso acontecer, o Fed ficaria diante de um terrível dilema: reduzir ou não reduzir os juros, em face do mergulho do dólar e da disparada dos juros de longo prazo. A margem de manobra do Fed seria nula, como em 1979, quando Paul Volcker assumiu sua presidência. Outra conseqüência poderia ser uma crise política envolvendo a independência do Fed, minando ainda mais sua credibilidade. Além disso, mesmo que o Fed ousasse, efetivamente, baixar os juros, em que medida isso ajudaria a economia se, simultaneamente, os juros de longo prazo dessem um salto?

A capacidade de o Fed satisfazer políticos e investidores depende de manter a sua credibilidade em relação à inflação. Sem isso, não terá condições de reagir a crises ou manter a produção compatível com seu potencial. É possível que o Fed tenha agido corretamente ao mostrar-se ousado, na semana passada. Mas o banco central americano não pode ser temerário em relação à inflação. A credibilidade conquistada penosamente é seu maior trunfo. Ela não deve ser perdida.