Título: Volta do déficit nas contas externas exige mais cautela
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2007, Opiniao, p. A16

O governo já conta com a possibilidade de o país voltar a ter déficits em conta corrente, depois de um longo e profundo ajuste nas contas externas, mostrou reportagem publicada pelo "Valor" na semana passada. Numa economia com baixa taxa de poupança, capitais estrangeiros são bem-vindos para alavancar investimentos produtivos. Será fundamental, porém, que os déficits em conta corrente sejam moderados e que o governo mantenha a disciplina fiscal.

Dados do balanço de pagamentos já refletem os primeiros impactos dessa mudança estrutural. O superávit em conta corrente acumulado em 12 meses caiu de 1,28% para 0,75% do Produto Interno Bruto (PIB) entre dezembro de 2006 e setembro de 2007. Ou seja, houve uma redução de 0,53 ponto percentual na demanda externa líquida, abrindo espaço para um crescimento mais acelerado da demanda doméstica.

Uma crítica comum aos déficits em conta corrente é que, não raro, a poupança externa é usada para financiar farras consumistas. É uma observação pertinente, mas não há indícios de que se aplique no caso atual. Os investimentos cresceram impressionantes 13,8% no segundo trimestre de 2007, comparados ao mesmo período do ano passado. O consumo das famílias avança a uma taxa mais modesta - 5,7% - e se tornou um indutor dos investimentos produtivos. O dado que mostra se a poupança externa está sendo bem usada é o déficit nominal do setor público. É certo que a qualidade do gasto público ainda é sofrível e que o aumento da carga tributária cria uma trava para expansões maiores dos investimentos. Mas o déficit nominal está diminuindo. Passou de 3,01% para 2,29% do PIB entre dezembro de 2006 e setembro de 2007, no resultado acumulado em 12 meses. A redução da demanda externa, portanto, abriu espaço para a demanda privada, sobretudo investimentos, e não gastos públicos.

É uma situação bem diferente da ocorrida nos primeiros anos do Plano Real, quando o Brasil exibia exagerados déficits gêmeos. Em dezembro de 1998, pouco antes de o Banco Central abandonar o regime de câmbio fixo, o déficit nominal se encontrava em 6,97% do PIB, e o déficit em conta corrente, em 3,96% do PIB. Não surpreende que, naquele período, a poupança externa não tenha sido capaz de alavancar a taxa de investimento.

Uma das lições das crises dos anos 1990 é que, mesmo quando o país mantém as contas públicas sob controle, não é recomendável que apresente déficits elevados em conta corrente. Naquele período, países asiáticos com contas fiscais em ordem foram alvos de ataques especulativos. A partir de então, fizeram severos ajustes em seus balanços de pagamento. Transformaram déficits em superávits, acumularam vultosas reservas internacionais e reduziram o endividamento.

O Brasil seguiu caminho semelhante. A crise das eleições de 2002 fez uma parte do serviço, ao desvalorizar a taxa de câmbio, mas foram necessários sacrifícios adicionais, como arrochos fiscal e monetário. A dívida externa encolheu de 41,8% para 16,1% do PIB entre 2002 e setembro de 2007, e as reservas internacionais cresceram de US$ 37,823 bilhões para US$ 166,555 bilhões.

Salvo algumas exceções, as economias asiáticas não dão indicações de que pretendem se distanciar de sua estratégia de manter enormes superávits em conta corrente. As projeções são de que em 2007 o superávit em conta corrente chegue a 9,3% do PIB na China, 8,3% em Taiwan, 3,1% na Tailândia e 2,6% na Indonésia. Há casos, porém, como o da Coréia do Sul, que teve superávit de 4,1% em 2004 e que, pelas previsões, apresentará um leve déficit de 0,1% em 2007.

As taxas de poupança asiáticas superam, em alguns casos, 30% do PIB, por isso esses países podem se dar ao luxo de abrir mão de poupança externa. Não é o caso do Brasil. O ajuste de 2003 representou um sacrifício indispensável, mas temporário. Agora que os indicadores de sustentabilidade externa se fortaleceram, a ponto de a economia ter sido pouco afetada pela recente crise das hipotecas americanas, seria adequado o país voltar a registrar déficits em conta corrente. Mas sem abrir mão de vigilância para que, no médio prazo, importações e exportações cresçam no mesmo ritmo, evitando criar novos desequilíbrios externos.