Título: Por parceria, EUA querem acelerar acordos com Brasil
Autor: Saccomandi, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2007, Especial, p. A18

Marisa Cauduro / Valor Parceiros continentais: o embaixador dos EUA no Brasil, Clifford Sobel, destaca a importância da iniciativa do etanol Os Estados Unidos estão abertos para negócios com o Brasil. Já, agora, para aproveitar o momento favorável da economia mundial. Essa parece ser a mensagem principal do embaixador americano, Clifford Sobel. E significa, entre outras coisas, a abertura para várias negociações de facilitação de comércio, com o objetivo de aproximar a iniciativa privada dos dois países e "integrar" as economias. O resultado, porém, ainda é incerto.

"As palavras-chave são: parceiros, parcerias e aproveitar o momento", disse Sobel, já deixando a sala do consulado americano em São Paulo, onde recebeu o Valor para uma entrevista na quarta-feira passada. Ele assumiu a embaixada dos EUA em agosto de 2006.

Sobel negou que o governo dos EUA esteja preparando uma proposta de acordo comercial com o Mercosul, caso as negociações da Rodada Doha fracassem. "Se está, eu não estou sabendo."

Mas, apesar de destacar que a prioridade agora é a Doha, ele deixou em aberto a possibilidade de EUA e Mercosul negociarem um acordo de livre comércio. É uma mudança importante. Em entrevista ao Valor, em 2005, o então embaixador americano, John Danilovich, disse que os EUA não tinham nenhum interesse na negociação 4 + 1 (com o Mercosul).

E, diante da relutância brasileira em negociar um acordo de investimentos com os EUA (que protege os investimentos de um país no outro), Sobel aventou a possibilidade de uma negociação particularizada, na qual seriam fechados antes os pontos de consenso. Não é uma prática comum para os EUA.

O embaixador se disse decepcionado com a ausência de empresas americanas no leilão de concessões de rodovias federais, vencido em boa parte pelos espanhóis. Mas citou a iniciativa do etanol como exemplo de sucesso na atuação conjunta entre governos e iniciativa privada de Brasil e EUA. E espera negociar em breve os acordos necessários para a abertura de rotas aéreas entre os EUA e o Nordeste brasileiro, onde ele lamenta quase não ver turistas americanos.

A principal aposta de Sobel para agilizar a discussão e encaminhar propostas que facilitem os negócios é o Fórum de CEOs, que reúne os principais executivos de grandes empresas dos dois países e é co-presidido pelos dois governos. A primeira reunião ocorreu este mês, em Brasília. Só com a Índia os EUA mantém um fórum similar.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: Por que o Fórum de CEOs?

Clifford Sobel: Porque esse é um momento a ser aproveitado. Deve-se a muitos fatores, não só à globalização, mas à crescente presença do Brasil no cenário internacional. E não é só o Brasil no Haiti, não é só o desejo reiterado pelo Brasil de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, não é só o G-20. Todos esses são elementos do crescente envolvimento internacional do Brasil. Mas um dos elementos mais importante é a crescente internacionalização, o foco global das empresas do Brasil, sua crescente participação no comércio mundial. E nos investimentos.

Este é o último ano em que o Brasil receberá mais investimentos do que fará no exterior. Isso amplia capacidades, gerenciamento, empreendedorismo. Várias empresas brasileiras são multinacionais de primeira linha. Temos nossas marcas multinacionais, que em muitos casos simbolizam os EUA, são conhecidas pelo mundo. Vocês têm a CVRD, talvez o maior investidor no Canadá hoje, têm a Embraer, a Petrobras, a Coteminas, a Votorantim, a Odebrecht, que constrói o aeroporto de Miami.

O sentimento de envolvimento, o otimismo e a confiança, não só na comunidade empresarial, mas na economia, no país, estão criando a oportunidade para que os setores privados do nossos países aproveitem esse momento.

Valor: O que o sr. quer dizer com aproveitar o momento?

Sobel: Quero dizer focar nas oportunidades e tirar vantagens delas. O Fórum de CEOs talvez seja o melhor ponto de partida. É uma chance única de ter a Casa Branca e o Planalto co-presidindo o processo de engajar nossas maiores multinacionais, as mais bem administradas, as mais empreendedoras, na discussão de como aproveitar o momento, como ampliar o investimento e o comércio entre nós. Nós só temos uma outra relação desse gênero, que é com a Índia. Acho que é um ponto de partida crítico.

A Casa Branca e o Planalto recebem as recomendações [dos CEOs] sem serem filtradas. Fazem parte, além das que eu já citei, empresas novas, de software e tecnologia. Do lado americano, estão os CEOs de muitas empresas importantes, da Coca-Cola, da Internacional Paper, que tem um projeto multibilionário no Brasil, da Motorola, do Citigroup, que está muito envolvido com a América Latina há décadas, temos o presidente da Intel.

Eles ficam juntos, sozinhos. Os governos abrem o encontro, e depois eles discutem a sós por seis ou sete horas. Ao final, os governos ouvem o relatório. Eles conversam sobre questões que nós, nos governos, estamos debatendo há anos. Ouvimos autoridades brasileiras, como a ministra Dilma Roussef, dizer que precisamos lidar com um mecanismo para queixas, um para arbitragens, para investimentos, para evitar a bitributação.

Valor: O que os CEOs podem dizer que os governos já não sabem?

Sobel: Eles podem desenvolver um processo, um foco e podem ressaltar a sua importância. Por exemplo, ficamos decepcionados com o resultado do leilão muito bem-sucedido das estradas federais. Nenhum companhia americana participou. Não sei porquê, estamos tentando descobrir. Mas vivemos numa sociedade global, as empresas têm opções, e o Brasil tem de competir por investimento. É porque não há regras para queixas, para arbitragens, nem para evitar bitributação? Ou porque outros lugares são mais competitivos ou mais rentáveis? Eu não sei.

O trabalho da embaixada americana é construir essas relações bilaterais, elevar o comércio e os investimentos. E os CEOs podem deixar claro aos governos quais são os obstáculos. O Fórum de CEOs foca principalmente como integrar melhor, e a palavra é essa, integrar, as nossas duas economias.

Valor: O que os CEOs disseram?

Sobel: Que é fundamental hoje, na era da globalização, desenvolver alianças econômicas. E, devido às escalas, ao tamanho, à proximidade e, de algum modo, às similaridades entre nossas economias, Brasil e EUA são parceiros naturais. O objetivo é a integração competitiva de nossas economias. Em seu documento, os CEOs focam em como fazer isso.

Valor: Por que o Brasil deveria negociar um acordo de investimentos com os EUA, se está recebendo investimento estrangeiro em volume recorde este ano? Os investidores parecem vir de todo modo.

Sobel: O acordo é recíproco, é bom para o Brasil e para os EUA. Já temos acordos com muitos países. Talvez não comecemos com um acordo completo, mas com um aspecto, como arbitragem, e discutamos como lidar com disputas. Às vezes não é preciso começar com o pacote completo. Pode-se começar com elementos mais importantes.

Além disso, mesmo que as coisas estejam bem, podem ficar melhor. Isso é aproveitar o momento. Há muito capital disponível para investimento no mundo. Com todas as opções que existem, o Brasil, os EUA e muitos outros países estão sempre focando em como fazer melhor. Apesar de o investimento externo ter crescido, o Brasil caiu de 14º para 19º entre os países que mais receberam. Assim, relativamente, o Brasil não ganhou, mas perdeu investimento.

Valor: O modelo de acordo de investimentos que os EUA assinaram com outros países põe dificuldades para o Brasil. Exige, por exemplo, que expropriações de terras sejam pagas em dinheiro, enquanto a Constituição brasileira prevê o pagamento em títulos da dívida agrária (TDA) em casos como reforma agrária. Os EUA podem negociar um acordo diferente com o Brasil?

Sobel: O processo de negociação abre oportunidades para compromissos e para ouvir os outros. O que os CEOs estão dizendo, e o que o governo dos EUA está dizendo, é que precisamos abrir uma oportunidade de diálogo. Não há um produto final já pré-estabelecido. Você só chega a ele por negociações. É claro que há diretrizes, há acordos que estabelecem parâmetros, referência com o que começar.

Valor: Com que ponto específico começar? Bitributação?

Sobel: A ministra Roussef focou especificamente em bitributação. Ninguém está procurando soluções da noite para o dia nesse processo. Todo o processo consiste em ouvir e entender o outro, e decidir sobre o melhor modo de avançar.

Veja outro aspecto, que é o trabalho com o Brasil no que chamamos de ciclo de inovação, o "venture capital". Fiquei muito impressionado com os "clusters" (distritos) de inovação tecnológica que existem no Brasil. Uma oportunidade de ampliar esses negócios é por meio de "angel investors" [investidores que apóiam empresas iniciantes e inovadoras] e "venture capital" [fundos que investem nessas empresas], mas não há muito venture capital aqui. Os secretários Paulson [Tesouro] e Gutierrez [Comércio], quando estiveram aqui, destacaram que podemos ajudar a chamar a atenção nos EUA para empresas inovadoras que estão se desenvolvendo no Brasil. A Bovespa, por exemplo, está falando agora em criar um bolsa similar à Nasdaq. São oportunidades de cooperação entre nossas economias.

Valor: O governo brasileiro insistiu com os CEOs para que eles apoiassem um acordo comercial entre os EUA e o Mercosul. Quais as chances de isso acontecer?

Sobel: Nós, em geral, e o Mercosul não é exceção, apoiamos organizações que integram economias e reduzem as barreiras comerciais. Se uma dessas entidades, o Mercosul especificamente, quiser iniciar um diálogo mais intenso com os EUA, estaremos abertos para isso. Dito isso, é claro que todas as atenções estão focadas em Doha.

Eu estou otimista com Doha. Quando muita gente diz que não há chance, é quando há uma chance. Houve muito progresso. Conseguimos produzir um texto sobre tarifas para agricultura e para manufaturados, podemos agora trabalhar com esses textos, esclarecer os vários pontos, usá-los como a base para concluir a rodada. Estamos mais perto disso hoje, pois identificamos uma faixa mais estreita dentro da qual decisões podem ser tomadas. Intensificamos a negociação, mostramos nossa disposição em lidar com os subsídios e pusemos novas propostas à mesa. Esperamos que também outros países o façam. O presidente Bush disse faz tempo que seríamos flexíveis e ainda diz que somos flexíveis. Esperamos negociar com sucesso uma conclusão com base nos textos que estão à mesa. Acho que veremos logo onde estamos.

Valor: O governo americano já está preparando uma proposta de acordo comercial com o Mercosul?

Sobel: Se está, eu não estou sabendo. Estamos totalmente ocupados com uma conclusão satisfatória para Doha. Nossos presidentes vêm se reunindo e discutindo isso, conversaram por telefone duas semanas atrás. Acredito sinceramente que os dois presidentes fizeram disso uma prioridade.

Valor: No caso da negociação de um acordo bilateral com os EUA, isso seria possível quando, e se, a Venezuela entrar no Mercosul?

Sobel: Não posso especular.

Valor: Mas não é especulação. O presidente Hugo Chávez já disse várias vezes que não quer nenhum acordo comercial com os EUA.

Sobel: Veremos o que vai acontecer quando acontecer. Mas quero ressaltar que estamos sempre dispostos a conversar, a negociar com a Venezuela. Venezuela e EUA têm uma enorme relação comercial. Comerciamos todos os dias, e não só petróleo. Muitas empresas americanas estão muito bem na Venezuela. Esperamos que a Venezuela apóie instituições democráticas. Mas é prematuro especular sobre o que pode ou não ocorrer.

Valor: É possível uma negociação comercial entre o Brasil, ou o Mercosul, e os Estados Unidos focada não num acordo amplo, mas sim em setores específicos?

Sobel: É uma boa questão. Temos há anos uma boa relação com o Brasil no diálogo de cooperação comercial, pela pelo qual nos reunimos duas vezes por ano buscando reduzir barreiras ao comércio. Um dos projetos com que queremos trabalhar com o Brasil é o de serviços de transporte postal noturno. Queremos agilizar esse processo. Já recebemos pessoal do governo brasileiro para conhecer nossas instalações, nossos procedimentos e softwares. Isso permite mover os produtos mais rápido.

Valor: O presidente Bush caminha para o final de seu governo sem maioria no Congresso e sem a capacidade de fazer avançar a sua agenda, inclusive a comercial. Quais são as perspectivas então para Doha e para qualquer outra negociação comercial com os EUA?

Sobel: Vejo que há alguma disposição de avançar em algumas de nossas iniciativas comerciais bilaterais. Já outras estão sendo revistas mais atentamente. Não posso prever se Colômbia, Panamá e Peru terão seus acordos aprovados pelo Congresso. Há um sentimento geral de que alguns, senão todos, o serão. O presidente Bush disse ao presidente Lula que, até que um acordo final seja acertado sobre Doha e até vermos se é algo que o Congresso pode apoiar, nós não saberemos o que acontecerá [no Congresso americano].

Por isso, é muito importante negociar um acordo que seja bom para todas as partes. Por isso não podemos focar só em subsídios agrícolas, mas temos de ver também os Nama, serviços financeiros e outros. É importante que seja um acordo equilibrado, que nossos congressistas possam apoiar. Acho que o tipo certo de acordo, justo e equilibrado, será aprovado pelo Congresso dos EUA.

[Voltando à relação com o Brasil] As duas palavras que eu gostaria de usar são "parceiros e parcerias" [diz em português]. Somos parceiros, e o único modo de podermos avançar é sendo parceiros.

Valor: Mas parceiros não é um conceito é muito abstrato, vago?

Sobel: Não. Significa que ouvimos um ao outro, não há monopólio de criatividade e sabedoria.

Os biocombustíveis são um grande exemplo de verdadeira parceria. Estamos aprendendo um com o outro. Havia um grande ceticismo, que isso era só mais um memorando de entendimento. O memorando prevê, primeiro, a harmonização de normas e padrões. Não se pode ter uma nova fonte de energia sem ter antes uma harmonização. Como será o mercado futuro? Como serão construídos os equipamentos, veículos? É preciso padrões. Isso não inclui só os EUA, mas também Índia, China e União Européia. Seis países, incluindo a UE, montaram a BFI [sigla em inglês para Iniciativa de Biocombustíveis] e, em conjunto, nosso objetivo para o final deste ano é ter essas harmonizações. Segundo me disseram, vamos conseguir.

Em segundo lugar, precisamos ter uma verdadeira parceria, não só hoje, mas no futuro. Isso significa cooperação em pesquisa e desenvolvimento. Vocês escolheram doze de seus melhores cientistas, e nos abrimos a eles os nossos laboratórios de agricultura, de energia. Essa viagem ocorreu há dois meses. Nós agora estamos montando o nosso grupo, que estará aqui no começo do próximo ano. Estamos atrás de projetos conjuntos, de pesquisa conjunta. E, como sempre, o setor privado está conduzindo. A LSU [Lousiana State University] já esteve aqui, Stanford, Illinois, nossas universidades estão aqui construindo relações com instituições brasileiras. Por que a Embrapa e o nosso Departamento de Energia não podem acompanham e apoiar alguns desses projetos de pesquisa e desenvolvimento?

Em terceiro lugar, falamos em focar o trabalho no nosso continente. Isso vai permitir que os países participem dessa nova pesquisa energética. Estamos democratizando a produção de energia.

Valor: Por que empresas americanas investiriam em etanol no Haiti ou na República Dominicana? Não é melhor vir direto ao Brasil?

Sobel: Cada país oferece as suas vantagens, o seu apoio, a sua logística. A beleza do acordo de biocombustíveis, o que às vezes as pessoas não percebem, é que o compromisso do presidente dos EUA de reduzir nossa dependência de petróleo dá à comunidade global a garantia de que não é só o Brasil. EUA e Brasil juntos podem estimular outros países, Japão, Índia, União Européia, a olharem isso melhor, sabendo que não é só um esforço brasileiro, mas também dos EUA e logo do mundo.

No ano passado, US$ 18 bilhões foram investidos em biocombustíveis, a maior parte no Brasil, mas a perspectiva é ampliar isso para muitos outros países. É por isso que essa iniciativa a terceiros países é tão importante. Vamos reduzir a dependência do petróleo caro e importado não só nos nossos países, mas em outros que gastam até 20% de seu PIB com petróleo. Por que não desenvolver uma capacidade [energética] local? Acho que a verdadeira visão nessa parceria é engajar outros países, desenvolvidos e em desenvolvimento, economias rurais, áreas empobrecidas e deixá-las participar.

Valor: A investigação envolvendo a Cisco pode afetar investimentos americanos no Brasil?

Sobel: Não sei o suficiente [sobre o caso] para comentar. Nós [a embaixada americana] realmente não estamos envolvidos nisso até agora. Não fomos procurados. Estamos acompanhando apenas.