Título: Teimosia de alto risco
Autor: Tiso, Joana ; Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 17/01/2011, Brasil, p. 5

Mesmo com as centenas de mortes na região, moradores insistem em ficar em casa, sabendo que elas podem desabar ou ser inundadas a qualquer momento Teresópolis (RJ) ¿ Os 630 mortos na região serrana do Rio de Janeiro, conforme dados atualizados até a noite de ontem, não são suficientes para convencer o marido de Creuza Maria da Silva. Todos os dias, ela cruza a cidade de ônibus para visitar Paulo, que insiste em permanecer na casa da família, localizada em um morro no bairro de Três Córregos, afetado pelas enchentes da última semana. ¿Eu fico com pena e vou cozinhar para ele¿, explica a mulher de 49 anos. Creuza deixou o lugar no fim de dezembro após uma chuva que derrubou a parede de sua casa, quase machucando suas netas. Desde então, tenta convencer o marido a fazer o mesmo. Em vão.

Uma volta pela cidade mostra que a teimosia de Paulo não é um caso isolado. Em várias partes, apesar de toda a tragédia que comoveu o país, pessoas ignoram os pedidos das autoridades para deixarem as áreas de risco. Creuza, atualmente na casa de um irmão com as duas netas que cria, teme pela segurança de Paulo, com que é casada há 30 anos. Metade da tempo o casal viveu numa região que a chuva agora ameaça destruir. ¿Fico com medo por ele nesse lugar. A Defesa Civil já falou sobre o perigo de ficar na nossa casa. Disseram inclusive que derrubariam caso ele não saísse de lá. Mas Paulo não saiu e ninguém apareceu¿, conta.

Desde que deixou a casa, assustada com o risco de desabamento, Creuza mantém a rotina de visitar o marido na esperança de convencê-lo a sair do local. Ontem ela foi buscar roupas na antiga casa e escutou outro não. ¿Acho que ele não vem. Já falei sobre o perigo, que pode cair, mas não adianta. Paulo é orgulhoso e não quer abrir mão da casa. Está teimando¿, lamenta a mulher, enquanto esperava o ônibus para voltar à casa do irmão sem o marido. Ela lembra que, outro dia, a água estava na altura da cama. Mas nem assim Paulo mudou de ideia.

A apenas dos quilômetros da casa de Paulo, os cunhados Erildo de Souza Machado, 53 anos, e José Francisco Nascimento, 62, não temem novos deslizamentos. Os dois são vizinhos numa área de barranco, entre o rio que transbordou na última terça-feira e um morro. Da janela de suas casas, eles podem ver dois carros boiando, muita lama e casas destruídas. Depois de passar três dias sem telefone, água e luz, ontem a energia voltou.

Apesar do caos, eles não dão ouvidos a pedidos de parentes e amigos. ¿Não tem mais perigo, o pior já passou¿, diz Erildo. Desde quarta-feira, ele procura a filha de 12 anos, que estava no bairro da Providência na madrugada do temporal. ¿Fui ao IML, mas não encontrei o corpo. Agora vou ficar por aqui mesmo. Vou seguir na casa¿, reforça o homem, ao lado de sobrinhos e ignorando a chuva que não dava trégua. ¿Se cair a casa já era, mas também vou ficar¿, emenda José Francisco.

Apesar da insistência de muitas pessoas em ficar nos locais de risco, também foi grande o movimento de gente deixando suas residências. Muitos tentaram salvar objetos em bom estado. Logo depois da tragédia, o secretário estadual do ambiente, Carlos Minc, estimou que havia cerca de duas mil famílias para serem removidas de Teresópolis até o fim da operação.

A Prefeitura da cidade, com a ajuda da Defesa Civil, mapeou 93 áreas de risco na região. Estudo feito pelo Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente identificou como principais problemas de 15 cidades do estado do Rio, entre elas Teresópolis e Nova Friburgo, a ocupação nas encostas, apontando como prioridade a retirada e a demolição desses imóveis.

Ausência de autoridade

Leandro Kleber Especial para o Correio

O processo de reconstrução das cidades atingidas pelas chuvas normalmente, além de demorado, não consegue evitar que novas moradias sejam erguidas em locais antes afetados. Quase sempre, as casas nas beiras dos rios que não foram levadas pelas águas continuam onde sempre estiveram e os morros voltam a ser ocupados com o tempo. ¿É difícil remanejar famílias para áreas de reassentamento que realmente sejam habitáveis. Isso tem um custo muito alto. É necessário que o Estado dê toda a infraestrutura para que haja condições de as pessoas viverem em outros locais¿, avalia Ana Luiza Coelho Neto, geógrafa e professora do Instituto de Geociência da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O Código Florestal Brasileiro em vigor (lei 4771/1965) determina que é proibida a derrubada de florestas situadas em áreas de inclinação entre 25 e 45 graus, como ocorre em boa parte da região serrana do estado fluminense. ¿É um absurdo que, depois dessas tragédias, continue havendo ocupação de áreas restritas. Tirar a vegetação é a mesma coisa que armar uma bomba relógio para explodir rapidamente¿, ressalta Eleazar Volpato, professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília.

No Morro do Bumba, em Niterói, onde quase 50 pessoas morreram e mais de 3 mil ficaram desabrigadas no ano passado, ainda há gente morando. Obras de contenção de encostas, prometidas pela prefeitura, também não foram concluídas. ¿No século 19, no período do Brasil Império, a corte já havia desapropriado áreas para conter as encostas em áreas de florestas com o objetivo de manter o fornecimento de água da cidade. Hoje, parte dessas áreas localizadas no Parque Nacional da Tijuca voltaram a ser ocupadas por favelas¿, acredita Eleazar Volpato.

O diretor de comunicação da Defesa Civil de Minas Gerais, major Edylan Arruda de Abreu, acredita que as famílias voltam a habitar as áreas atingidas por deslizamentos ou por cheias dos rios porque, em parte, já se acostumaram a conviver com o problema. Em muitas vezes, ele também observa que as prefeituras não conseguem oferecer condições alternativas de moradias.