Título: Bolsa de valores e litígios societários
Autor: Bueno Filho, José Edgard C.
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2007, Legislação, p. E2

Impossível não notar o crescente desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro. Com a economia estável, o país a um passo do "investment grade", os juros em queda e a entrada significativa de capital estrangeiro no país, a bolsa de valores (ela própria já abriu seu capital) vem batendo recorde atrás de recorde, atraindo cada vez mais investidores. Concomitantemente, cresce como nunca o número de empresas interessadas em abrir seu capital e angariar fundos em um mercado que, aos poucos, vem se popularizando no Brasil. Razões econômicas à parte, muitos consideram o cenário positivo fruto de um importante amadurecimento e preparo que o país passa a experimentar na área.

Se por um lado o cenário é de prosperidade, por outro não podemos esquecer que, acompanhado do crescimento, virão as dores dele decorrentes. É fato natural que o aumento dos relacionamentos jurídicos tragam consigo disputas. O aumento de operações em um ambiente jurídico, tal como ocorre atualmente no mercado de capitais, significa complexidade de regras para reger as relações entre as partes. E complexidade de regras significa litígio. E muitos. Assim, advogados e empresários, por vezes já acostumados com os procedimentos inerentes às aberturas de capital e lançamentos de empresas ao mercado, agora devem estar preparados também para enfrentar o outro verso da moeda, o crescimento de conflitos entre (1) companhias e acionistas; (2) acionistas entre si; e (3) entre acionistas, controladores ou não, e investidores. Em mercados mais avançados isto já é comum. É o que eles chamam de "securities litigation", o que no Brasil, inevitavelmente, crescerá nas mesmas proporções em que o mercado de capitais se populariza.

-------------------------------------------------------------------------------- Se por um lado o cenário é de prosperidade, por outro, acompanhado do crescimento, virão as dores dele decorrentes --------------------------------------------------------------------------------

Com este cenário em perspectiva, compete ao legislador sofisticar as ferramentas utilizadas para a solução dos conflitos. Sem essa sofisticação o risco de insegurança nas soluções dadas a esses conflitos tenderá a ser elevado. A fuga do Poder Judiciário como mediador dos conflitos deixa de ser uma mera recomendação e passa a ser uma necessidade. Com efeito, o Judiciário ainda não está técnica e estruturalmente aparelhado para lidar com este tipo de disputa. Daí porque veio em boa hora a obrigação legal de que as companhias listadas nos chamados Nível 2 e Novo Mercado tenham obrigatoriamente em seus estatutos sociais cláusula de arbitragem elegendo a Câmara de Arbitragem da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) como o foro para a solução dos conflitos.

Vislumbrada a real possibilidade de conflitos, as atenções devem se voltar a algumas questões relevantes, entre elas a prescrição, que foge aos prazos ordinários do Código Civil, sendo delimitada pela legislação esparsa; a possibilidade de utilização de medidas de urgência (cautelares ou antecipatórias), especialmente para suspender ou garantir a vigência de deliberações, condutas e decisões tomadas no âmbito societário antes de constituído o processo arbitral; e a previsão legal de participação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nas disputas, na qualidade de "amicus curiae", com a função de auxiliar julgadores e árbitros na interpretação da matéria e na solução do conflito. Entre outras particularidades, deve-se ter em mente ainda que o cumprimento das disposições estatutárias e legais caracteriza-se, por essência, em uma típica "obrigação de fazer", passível, portanto, de execução específica, segundo dispositivos do Código de Processo Civil, inclusive com a adoção de medidas de apoio para cumprimento forçado, tais como multa, comunicados de fato relevante ao mercado, procedimentos administrativos junto à CVM e até mesmo intervenção judicial na companhia infratora. E, por fim, a interferência do Ministério Público no cumprimento das regras deste novo mercado também tende a ganhar contornos relevantes, citando como exemplo, dentre outros, as ações civis públicas para coibir a prática de "insider trading" dentro das companhias.

Em suma, é ótimo que no Brasil empresas e investidores estejam mais maduros e preparados para participar do mercado de capitais. Mas é preciso ter em mente que este amadurecimento e preparação não terminam com a oferta publica de ações na bolsa de valores. O grau de sofisticação e de segurança jurídica fornecido aos investidores nas disputas e conflitos vindouros será um importante elemento na consolidação do mercado de capitais como uma das principais fontes de financiamento público e de criação de poupança interna, que são dois elementos basilares em qualquer país que pretenda crescer e se desenvolver.

José Edgard da Cunha Bueno Filho e Marcelo Junqueira Inglez de Souza são advogados do setor de contencioso cível do escritório Demarest e Almeida Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações