Título: STF de novo pode ceder à tentação de legislar
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Fonte: Valor Econômico, 02/10/2007, Opinião, p. A14

O Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir amanhã quem é dono de um mandato, o partido ou o titular de um cargo eletivo. O STF vai julgar os mandados de segurança do PSDB, do DEM e do PPS, que pedem de volta as cadeiras perdidas no Congresso desde a posse dos atuais parlamentares. Para que isso ocorra, os 46 deputados que até a semana passada estavam filiados a partidos pelos quais não foram eleitos e os quatro senadores na mesma situação terão de ser cassados para que seus suplentes assumam. Estarão em pauta, de um lado, a legitimidade de 50 mandatos; mas, de outro lado, também a legitimidade que tem o Supremo para tomar uma decisão que atinge tão profundamente o Legislativo, sem que a Constituição e a lei dêem respaldo para tanto.

No mérito dos mandados de segurança, não há dúvida de que a fidelidade partidária é desejável e fundamental para que os partidos solidifiquem os hoje frouxos vínculos com os eleitos sob seu abrigo. Desde a redemocratização, quando a Constituinte conferiu aos partidos uma ampla liberdade de organização, a pulverização partidária tornou a cooptação de deputados e senadores um instrumento do governo do momento para garantir maiorias parlamentares mais confortáveis. Assim, o pequeno e improvisado PRN, uma legenda de aluguel pela qual Fernando Collor de Mello foi eleito presidente, em 1989, inchou a partir de 1990, quando se tornou o partido no governo, e sumiu no momento seguinte; o PSDB passou a ser um dos maiores partidos do país a partir de 1994, depois que elegeu Fernando Henrique Cardoso. Na época, o então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, ganhou o apelido de "trator" graças à operação por ele articulada para inchar o PSDB. O PFL, hoje Democratas, aliado de primeira hora de FHC, também foi bastante beneficiado pelo chamado "troca-troca".

Esse é um fato, e é consenso - embora não o interesse - entre todas as legendas que a fidelidade partidária é fundamental para a consolidação do sistema democrático. A punição para o "troca-troca" está em todos os textos de reforma política dos últimos 15 anos e não chega ao plenário para votação. Outro fato é que o STF, a pretexto de preencher lacunas nos textos legais, tem tomado sucessivas decisões e assumido o papel de legislador em matérias relativas a eleições e partidos políticos. No início do ano, por exemplo, o STF simplesmente jogou para o ar a cláusula de barreira, prevista em lei.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao referendar por unanimidade a tese de que os mandatos são dos partidos, não dos eleitos, na prática também legislou. Se os mandatos dos trânsfugas forem cassados por decisão do STF, o Supremo terá também extrapolado a lei e a Constituição, já que nenhuma delas prevê punição para a infidelidade. Se decidir que a obrigação vale apenas para as próximas eleições, não apenas estará legislando, mas fazendo isso de forma casuística: confirmará o seu poder legiferante em matéria eleitoral e partidária mas não estabelecerá um confronto direto com este Congresso, impondo-lhe uma crise que será inevitável caso 50 parlamentares sejam cassados.

Não há nenhuma dúvida de que a mudança partidária é eticamente condenável e impede que os partidos brasileiros, já pouco orgânicos, possam assumir um papel efetivo de representar politicamente um segmento do eleitorado. Mas persiste também a dúvida se o STF pode ter tanta ascendência sobre um outro Poder, rompendo o equilíbrio que deve existir entre eles. Preocupa a declaração do ministro Marco Aurélio Mello nas vésperas de uma votação tão importante: "O Supremo vem de uma decisão que a sociedade aplaudiu [a aceitação da denúncia contra os envolvidos no escândalo do mensalão] e terá de decidir se, nessa questão dos partidos, reclamada pela população, andará em direção contrária". A dúvida que tal afirmação traz é se a Justiça deve decidir simplesmente de acordo com o que acredita ser um clamor da opinião pública, ou se restringir exclusivamente às leis e à Constituição. Enfim, se o ativismo do Judiciário é legítimo. O STF tem todas as razões para ser contra a fidelidade partidária, mas deve ater-se às suas estritas atribuições. Numa democracia, o Legislativo legisla - e, por pior que possam ser as leis aprovadas pelo Congresso, cabe ao Judiciário apenas julgar, nos limites por ele definidos. O Congresso é eleito para fazer leis. O STF não foi submetido às urnas.