Título: O papel das reservas na crise
Autor: Lacerda ,Antonio Corrêa de
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2007, Opinião, p. A14

As recentes turbulências no mercado global evidenciam a importância de o Brasil ter diminuído a sua vulnerabilidade externa e ampliado suas reservas cambiais. Como apontamos em artigo anterior nesse espaço ("US$ 100 bilhões de reservas: muito ou pouco? ", Valor, 12/04/2007), possuir reservas cambiais não representa uma garantia contra efeitos das crises, mas pode amenizá-los.

Embora o Brasil tenha conseguido ampliar o volume absoluto das suas reservas para os atuais US$ 162 bilhões, essas ainda representam apenas cerca de 16% do Produto Interno Bruto (PIB), volume baixo comparado a países de porte semelhante, como é o caso de Rússia, com US$ 416 (37% do PIB), Coréia do Sul, US$ 255 bilhões (30%) e Índia, R$ 230 bilhões (25%). Estamos, portanto, longe de limites ou excessos de reservas, e devemos seguir acumulando-as.

A relação entre reservas e o tamanho da economia evidentemente não se constitui no único referencial a ser tomado. A situação do balanço de pagamentos, volume e perfil de vencimento da dívida externa, estrutura do passivo externo etc, são outros elementos fundamentais que vão determinar o grau de vulnerabilidade dos países.

No entanto, o que pode ser generalizado nas diferentes estratégias de desenvolvimento dos países é a preocupação com as defesas. Diante da supremacia do dólar americano, cuja primazia e exclusividade de emissão é de um único país, a financeirização das últimas duas décadas foi a saída encontrada pelos demais países. Embora isso não seja garantia de blindagem nas crises, à imensa maioria dos países restou a alternativa de acumular dólares. No período 1998-2007 as reservas globais cresceram de US$ 2 trilhões para US$ 7 trilhões.

O desafio dos países detentores de moedas não conversíveis é garantir um mínimo de estabilidade e autonomia para suas taxas de juros e câmbio domésticas. Ter vulnerabilidade nas contas externas significa, diante do quadro imposto, perder a capacidade de administrar o seu destino.

No que se refere à atual crise do mercado subprime norte-americano e seus reflexos no mercado brasileira, há alguns elementos importantes, que tornam o quadro bastante diferente da rápida perda de reservas ocorrida na crise brasileira do final de 1998 e início de 1999. Naquela feita, o Brasil perdeu parte significativa das suas reservas, então de US$ 75 bilhões, em apenas algumas semanas.

-------------------------------------------------------------------------------- País terá um custo mais elevado se nas crises não puder contar com reservas robustas para blindar a sua economia --------------------------------------------------------------------------------

Mas o cenário era outro. O país tinha um déficit em conta corrente superior a US$ 30 bilhões ao ano (5% do PIB), a dívida externa era elevada proporcionalmente às reservas e essas eram majoritariamente compostas de hot money, atraídos por elevadas taxas de juros (de até 42% ao ano). Também parte de nossas reservas brutas de então advinham dos aportes do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Hoje a situação é diferente. Não só possuímos mais reservas quantitativamente, mas a sua qualidade é melhor, derivada de superávit comerciais e ingressos de capitais de longo prazo. Também temos superávit em conta corrente, o que é um grande trunfo quando o crédito se esvai como ocorre agora. Os débitos com o FMI foram quitados no final de 2005 e a dívida publica externa líquida brasileira foi zerada.

Do ponto de vista da política de acumulação de reservas tem havido um intenso debate sobre o seu custo de carregamento. De fato, para muitos países, e particularmente para o Brasil, é custoso acumular reservas. O diferencial entre as taxas de juros domésticos e internacionais cria um ônus para as contas públicas. Como contrapartida ao acúmulo das reservas, que aplicadas rendem cerca de 4% ao ano, são emitidos títulos em reais, cujo financiamento a taxas de mercado custam, em média, 11,25% ao ano. No passado recente esse diferencial era ainda maior.

No entanto, apesar do custo fiscal, acumular reservas em um mundo volátil revela-se imprescindível. Um custo muito mais elevado para um país em momentos de turbulência seria não poder contar com reservas robustas para blindar a sua economia.

A pergunta que tem de ser feita é, se de fato é custoso carregar reservas cambiais, por que a maioria dos países em desenvolvimento bem-sucedidos tem como estratégia comum elevá-las? Porque lá os juros não são tão altos - pode ser uma resposta repentina. E aí chegamos ao ponto crucial. O que está fora da curva no Brasil não é o volume de reservas, mas os juros domésticos, que são muito elevados comparativamente à média internacional. É essa a distorção a ser corrigida. Para isso, entre outras medidas, é preciso persistir na diminuição da nossa vulnerabilidade externa, o que inclui continuar a acumular reservas para garantir maior autonomia nas decisões da política econômica doméstica.

Políticas econômicas são uma questão de escolhas, assim como não há política econômica neutra. Todas as alternativas têm seus custos e benefícios. Cabe aos decisores optar pela melhor relação de longo prazo possível.

No caso das reservas cambiais, podemos e devemos mantê-las como ativo estratégico fundamental. Embora hoje possuamos um nível elevado, comparado com o nosso próprio histórico, nossas reservas ainda representam um volume baixo para o porte da economia brasileira relativamente a países semelhantes. Vale continuar colocando "as barbas de molho". Mesmo se a crise passar logo, a instabilidade é e será inerente ao capitalismo financeiro.

Antonio Corrêa de Lacerda é professor-doutor do departamento de economia da PUC-SP, doutor pelo IE/UNICAMP, e autor, entre outros livros, de "Globalização e Investimento Estrangeiro no Brasil" (Saraiva). Foi presidente do Cofecon e da SOBEET. E-mail: aclacerda@pucsp.br