Título: O tango de Cristina
Autor: Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 17/01/2011, Mundo, p. 14

De luto pela morte do marido, presidente deve disputar a eleição, em outubro. Objetivo é garantir a permanência do kirchnerismo Sempre vestida de preto, Cristina Kirchner cumpre todos os compromissos presidenciais sem muito entusiasmo. Nos últimos 82 dias, a política da Argentina esteve de luto, quase parada no tempo, com movimentos discretos para voltar à rotina. Em 27 de outubro de 2010, a presidente perdeu muito mais do que um marido. Néstor Kirchner não era apenas um companheiro, mas um mentor político, um líder da estrutura do poder que rege o país desde 2003. O período de reclusão, no entanto, deve ficar para atrás. Neste ano, Cristina planeja concorrer à reeleição, a fim de tomar a força e o lugar do parceiro na política argentina.

No último dia do ano, Cristina deu o tom de sua dor e do desafio que terá pela frente. ¿Quando amanhã todos levantarem suas taças, peço que pensem muito na Argentina, em tudo o que temos para seguir trabalhando e fazendo para que esta Argentina siga crescendo. E, em algum momento, um segundo, nada mais, pensem também nele, porque ele teve muito a ver com este país¿, disse, com a voz trêmula e os olhos cheios d¿água. Desde que Néstor morreu, vítima de ataque cardíaco, a chefe de Estado não se refere ao marido pelo nome, mas apenas por ¿ele¿.

Nos próximos meses, Cristina precisará recuperar sua força. As eleições presidenciais argentinas estão marcadas para outubro. É hora de manter a liderança no partido Frente para a Vitória e seguir os passos do marido rumo a mais quatro anos de governo. ¿Eu, pessoalmente, me comprometo a redobrar os esforços, a tirar as horas do meu descanso e do meu sonho, como ele fazia. O exemplo dele, de seu sacrifício, de sua vontade, de seu esforço, é o que me guia¿, declarou a presidente.

Para Raúl Bernal-Meza, professor de relações internacionais da Universidade de Buenos Aires, a influência de Néstor Kirchner nas diretrizes do governo deve ser perpetuada por Cristina, porém ela começa a fortalecer seu poder de decisão pessoal. ¿Ainda estamos em uma etapa de transição, que foi favorecida pelas festas de fim de ano e pelos meses de férias de verão. Esse período, que tem sido uma espécie de tempo de espera, foi favorável para colocar nas suas mãos não apenas o controle do governo, mas também do kirchnerismo. Assim como ele nunca compartilhou o poder e as decisões com ninguém, ninguém tem a palavra para se impor sobre a presidente¿, comenta o professor.

Segundo Lincoln Bizzozero, especialista uruguaio e investigador do Programa de Política Internacional da Universidade da República, em Montevidéu, a sombra de Néstor Kirchner sempre esteve presente no governo. No entanto, não tinha função tão determinante, a despeito da aparência. ¿Cristina não era uma marionete, tinha e dava ao governo seu selo pessoal. Nesses meses de luto, ela tem levado as coisas bem, mas temos que considerar que a presidente recebeu uma trégua da oposição e das críticas¿, diz Bizzozero. ¿Precisamos esperar até março ou abril para ver como ela vai ser comportar na disputa pela Casa Rosada¿, acrescenta.

Focos Em ano de campanha, Cristina deve investir em medidas para fortalecer a política, que pode estar muito além da economia ¿ o principal foco do casal Kirchner desde que assumiu o governo. Os críticos reclamam que o governo deixou uma grande dívida social com a população. ¿Nos próximos meses, Cristina vai revelar mais seu perfil pessoal. Isso quer dizer que negociará algumas questões que para ela são importantes, como os temas do gênero, dos direitos humanos e das relações internacionais¿, diz Bizzozero.

Nesse último campo, Cristina começou o ano demonstrando empenho. Na manhã de ontem, ela desembarcou no Kuweit ¿ a primeira escala em uma visita de seis dias ao Oriente Médio. Os objetivos da viagem são buscar investimentos e abrir novos mercados aos produtos argentinos. De acordo com o jornal Clarín, cerca de 100 empresários acompanham a presidente, que visitará ainda o Catar e a Turquia. Durante o pronunciamento de fim de ano, Cristina tinha dito que a Argentina deve se posicionar novamente como um país de destaque no cenário internacional, ¿como talvez nunca esteve em toda a sua história¿. Na segunda-feira passada, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antonio Patriota, reuniu-se em Buenos Aires com Cristina. O encontro teve caráter preparatório para a visita da presidente Dilma Rousseff à Argentina. ¿Revisamos a agenda bilateral, a visita da presidente Rousseff e os temas habituais do processo de integração¿, contou o chanceler argentino, Héctor Timerman.

Uma candidata natural

Depois de passar por um período pessoal difícil, Cristina Kirchner se planeja para mais um desafio. Durante as festas de fim de ano, o refúgio com a família em Río Gallegos, ao sul de Buenos Aires, pode ter lhe ajudado a decidir o caminho a seguir em 2011. Ela ainda não se declarou candidata às eleições de outubro, e há especulações na Argentina de que talvez isso nem sequer ocorra. Apesar do clima de mistério, as pesquisas presidenciais já a apontam como a vencedora.

O momento é propício para Cristina. Sua liderança, mesmo sem o companheiro político ao lado, se fortaleceu. Ninguém dentro de seu partido se opõe à reeleição. ¿De acordo com as pesquisas, Cristina é a ganhadora. Mesmo no pior cenário, ela vence também no segundo turno. No entanto, as possibilidades de ser novamente eleita não estão tanto no sucesso da sua gestão, mas na incapacidade da oposição de apresentar um projeto e uma proposta alternativa e única¿, afirma Raúl Bernal-Meza, professor da Universidade de Buenos Aires.

Para Luiz Fernando Ayerbe, coordenador do Centro de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a presidente argentina deve começar a tomar rédeas da situação depois do anúncio oficial da candidatura. No entanto, apesar de estar em uma situação confortável, pela aprovação popular de 57%, ela será pressionada a assumir uma postura mais firme neste ano. ¿Cristina aproveitou esse momento para se concentrar e começar a organizar as estruturas do governo que lhe permitam passar 2011 de forma especial, porque, se sua popularidade cair, ela pode até desistir de uma candidatura. A essa altura, não vale a pena perder¿, explica o especialista.

Um dos opositores de Cristina é o ex-presidente argentino Eduardo Duhalde, peronista ortodoxo e liberal, que foi vice no primeiro mandato de Carlos Menem. Em dezembro, lançaram suas pré-candidaturas Ricardo Alfonsín, da social-democrata União Cívica Radical (UCR), a liberal-cristã Elisa Carrió, e o centro-esquerdista Fernando ¿Pino¿ Solanas. Cristina deve ser a última a fazer o anúncio. ¿Por causa do luto, ela foi preservada pela oposição. Mas essa trégua não existe mais. A presidente está se preparando para esse período, que será de duros confrontos. Ela tem uma economia que cresceu muito no último ano, então está em situação favorável. Agora, precisa montar sua estratégia e cercar seu governo com pessoas de confiança, como já começou a fazer depois da morte de Kirchner¿, analisa Ayerbe. (TS)

Caminho político

Como Cristina Kirchner ascendeu ao poder na Argentina, sucedendo ao próprio marido

» Quando era estudante de direito da Universidad Nacional de La Plata, Cristina se juntou ao Movimento Justicialista e começou a se interessar por direitos humanos. Na mesma época, conheceu o marido, Néstor Kirchner.

» Em 1989, foi eleita deputada estadual pela província de Santa Cruz. Permaneceu no cargo até 1995. Voltou para o Congresso em 1997, onde ficou por mais quatro anos. Nesse período, participou de diversas comissões de investigação para descobrir problemas como lavagem de dinheiro e o atentado à embaixada de Israel, em Buenos Aires.

» Entre 2001 e 2005, foi eleita senadora pela província de Buenos Aires e ficou ao lado do marido quando ele ascendeu à Presidência da Argentina, em 2003.

» Cristina foi eleita presidente do país em 2007 e dedicou sua vitória à Néstor ¿ segundo ela, um ¿companheiro de toda uma vida¿. Durante seu governo, conseguiu um crescimento econômico de 8%, além da redução do desemprego e da pobreza.