Título: Pode haver vida após a morte
Autor: Wolf , Martin
Fonte: Valor Econômico, 03/10/2007, Opinião, p. A15

"Quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas ficarão complicadas. Mas enquanto a música estiver tocando, teremos de ficar de pé e dançar. Nós ainda estamos dançando." - Chuck Prince, no Financial Times de 10 de julho

"Um banqueiro confiável, infelizmente, não é aquele que antevê e evita o perigo, mas aquele que, ao falir, fica falido de uma forma convencional, junto com seus pares, de forma que ninguém possa realmente responsabilizá-lo." - John Maynard Keynes, 1931.

A dança parou: o Citigroup de Prince acaba de anunciar US$ 6 bilhões em baixas contábeis e prejuízos para o 3º trimestre. Ele está longe de estar só. Mais más notícias certamente virão. Como predisse Keynes, os bancos se uniram juntos à dança de Prince e estão saindo dela. Enquanto não cessar, ninguém saberá quais são os lucros dos bancos: eles reportam (e se remuneram) com base em lucros que são compensados por baixas contábeis quando os maus empréstimos vêm à tona.

O que impressiona na crise atual é como ela é tradicional, apesar da parafernália moderna do empréstimo securitizado. Estamos testemunhando más práticas de concessão de empréstimo à moda antiga e tradicionais erros no cálculo dos preços de risco. Além disso, impressiona a gravidade das conseqüências. O mercado dos EUA em papéis lastreados em ações encolheu 21% entre 8 de agosto e 1º de outubro. A fuga do risco causou grandes disparidades entre as taxas de juros que incidem sobre os commercial papers e as obrigações do Tesouro dos EUA e entre as taxas de juros do banco central e as vigentes nos mercados interbancários de três meses. Esta ruptura aconteceu no núcleo da economia mundial: o mercado habitacional dos EUA e os de dívida dos países avançados.

Admito estar surpreso e decepcionado. Não, não estou surpreso pelo recálculo nos preços do risco. Pelo contrário, fiquei espantado, eu e muitos observadores externos, com a disposição de investidores à caça de rendimentos assumirem riscos em troca de pequenas recompensas. Quando muito, o recálculo do preço do risco foi muito pequeno, pelo menos por ora: os mercados de ações estão aquecidos, os spreads dos títulos dos emergentes em relação aos Treasuries dos EUA no índice composto de títulos de emergentes do JPMorgan (Embi Plus) cresceram meros 39 pontos base entre 6 de julho e 1º de outubro; nos bônus corporativos com classificação Caa, aumentaram não mais do que 191 pontos-base.

O que me surpreende é como a securitização dos financiamentos residenciais de risco comprovou ser tóxica para os mercados financeiros. Admito que pensei que a securitização possuía características atraentes: deveria permitir que os bancos pudessem permanecer no setor de financiamento habitacional como originadores e intermediários sem transportar um valor demasiado das taxa de juros, dos riscos de liquidez e de longo prazo para a sua própria contabilidade altamente alavancada; deveria permitir que os bancos pudessem transferir esses riscos para investidores que querem ativos com taxas de rendimento mais elevadas com prazos mais longos; e, nesse processo, tomadores de crédito de maior risco deveriam ter acesso a mais crédito do que antes.

-------------------------------------------------------------------------------- Não é impossível vender produtos complexos de forma segura, mas só as empresas que se preocupam com suas reputações são capazes disso --------------------------------------------------------------------------------

Em 2005, o próprio Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve, observou que progressos na tecnologia haviam revolucionado a concessão de empréstimos: "Nos casos em que os outrora requerentes mais marginais teriam seu crédito simplesmente negado, hoje as instituições de crédito têm condições de avaliar de forma bem eficiente o risco representado por eles e atribuir um preço ao risco de forma apropriada. Essas melhorias levaram ao crescimento veloz na concessão de crédito habitacional de risco" (Comentários feitos por Greenspan em 8/4/ 2005). Opa!

Então o que deu errado? Há duas respostas essenciais. A primeira nada tem a ver com a securitização em si, mas com um acesso mais do que conhecido de euforia que arrebatou financiadoras e tomadores de crédito num momento de baixas taxas de juros e de aumentos velozes nos preços das garantias básicas (ou seja, habitação). Mas o segundo tem muito a ver com securitização: a retirada da concessão do empréstimo da contabilidade dos iniciadores estimulou as descuidadas concessões de crédito ("isso não deverá aparecer nos nossos livros") e também estimulou a crença maior de que os bancos estavam mais livres do risco ("este instrumento nada tem a ver conosco") do que realmente ocorreu.

Por que isso aconteceu? Como observa Robert van Order, das Universidades de Aberden e Michigan, a securitização necessariamente cria uma cadeia de negociadores na qual o empréstimo bancário interpõe apenas uma instituição entre o tomador de empréstimo e o depositante. Essas cadeias dependem de confiança, ou, como define, da "confiança nos originadores e nos devedores finais em produzir empréstimos bons e de honrá-los adequadamente". A confiança provou ser indevida e consequentemente se extinguiu: crédito significa "ele (ou ela) acredita". É lamentável, mas ele já não crê.

Na ausência de confiança, a ignorância não só do valor dos ativos securitizados, como da identidade de quem os detém, levou à extinção dos mercados de papéis lastreados em ativos. Isso obrigou os bancos a concederem empréstimos diretamente aos canais, instrumentos de investimento especial e de propósito especial que criaram. A necessidade de lhes prover recursos esgotou a concessão de empréstimos e, acima de tudo, a provisão de liquidez aos mercados interbancários. Uma conseqüência (entre muitas) foi o colapso do modelo de negócios do Northern Rock no Reino Unido.

Uma reação óbvia a esse fiasco é recomendar a volta ao antigo modelo de concessão de empréstimo baseado em banco, mas isso seria um grande erro. As vantagens potenciais da securitização em contraponto ao empréstimo bancário "café-com-leite" se mantêm, pois os bancos são inerentemente frágeis. Se estes mercados quiserem se recuperar, porém, os erros precisam ser corrigidos: é preciso encontrar uma forma de demonstrar integridade na concessão de crédito; a transparência dos títulos mobiliários precisará aumentar; e os bancos precisarão se segurar adequadamente contra a necessidade de prover liquidez aos instrumentos não contabilizados nos seus balanços patrimoniais. Não é impossível vender produtos complexos de forma segura: a Boeing e o Airbus conseguem. Mas só empresas que comprovadamente se preocupam com suas reputações são capazes disso. Está nas mãos dos originadores dos passivos securitizados fazer o mesmo.

Muita poeira precisará se depositar nos mercados habitacionais e financeiros e na economia mundial. O mundo que surgir terá uma aparência diferente sob muitos aspectos, mas não há nenhum motivo para que a securitização não se transforme num elemento normal e confiável nos mercados financeiros, da mesma forma que os "junk bonds" corporativos e empréstimos aos mercados emergentes também comprovaram ser. Sempre é possível ter muita coisa boa. Neste caso, o mundo teve muitíssimo mais de algo que não foi tão bom como deveria ter sido. A securitização, porém, é uma coisa boa mesmo assim. Ela pode reaparecer, contanto que as lições da dança dos mercados financeiros sejam aprendidas.