Título: Risco de mais crise com a Argentina
Autor: Sérgio Leo
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2005, Brasil, p. A2

A reunião de alto nível Brasil-Argentina para responder às demandas do vizinho por salvaguardas no Mercosul foi conduzida pelo governo brasileiro de maneira a evitar uma discussão sobre a contra-proposta brasileira e uma reação imediata da delegação argentina. Chefiada pelo secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, a delegação brasileira concentrou-se em outros temas, como o financiamento à infra-estrutura de integração. Só ao fim foi entregue o documento brasileiro com a resposta do governo aos pedidos argentinos, de um mecanismo de salvaguardas, com barreiras automáticas à importação entre os vizinhos em casos considerados de risco à industria local, e de um "código de conduta" que impeça transferência de indústrias de um país ao outro. A equipe brasileira deixou claro que preferia ouvir depois a resposta dos argentinos -tudo para evitar uma reação precipitada, possivelmente negativa. Afinal, a contra-proposta brasileira, ainda que represente uma concessão inédita, para criação de mais um entrave à integração dos mercados no Mercosul, não atende ao pleito argentino, de criação de gatilhos automáticos, capazes de permitir a adoção das salvaguardas. E passa bem longe da idéia de criar pré-condições para investidores interessados em vir para o Brasil. A razão para a tentativa brasileira de ganhar tempo é simples: o Mercosul passa (de novo?) por uma de suas mais graves crises. As dificuldades argentinas, agravadas com a moratória da dívida, fazem com que o país sócio do Brasil queira criar barreiras a importações e exija, do vizinho maior, uma forma de evitar que os investidores fujam do conturbado mercado argentino e passem a produzir em solo brasileiro. No Brasil, industriais se esquivam da "solidariedade" pedida pela Argentina, e comecem a engrossar o coro pela revisão, quem sabe esvaziamento, do Mercosul. É nesse clima em que os dois países terão de decidir o futuro do Mercosul. E não se trata de retórica: pelo cronograma do bloco, todos os sócios terão de decidir, até o fim deste ano, como eliminar distorções no comércio que deveria ser livre, e chegar a uma política de tarifas comum, para todas as mercadorias. Está previsto, por exemplo, o fim das exceções nacionais à política de importação de máquinas e equipamentos destinados à indústria, os chamados bens de capital. O assunto já se tornou de alta prioridade para o governo brasileiro. "Essa discussão não pode ficar para dezembro", diz o secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex), Mário Mugnaini. Ele pretende, nos próximos dias, reunir integrantes do governo para definir que critérios serão usados na definição das futuras tarifas comuns para produtos que hoje são taxados de forma diferente ao entrar em cada um dos países sócios do Mercosul.

Mercosul passa (de novo?) por grave crise

Tamanho do problema: desde o começo da década, os argentinos jogaram no lixo a tarifa externa comum para os bens de capital, e decidiram, ainda no governo Carlos Menem, estimular a modernização de seu parque industrial com tarifa zero de importação dessas máquinas e equipamentos. Fez o mesmo para alguns bens de informática e telecomunicações. Foi uma crise, na época, mas o Brasil afinal acomodou a decisão argentina (concedeu um "waiver", no jargão diplomático). Em 2006, porém, está previsto o fim das exceções, e, teoricamente, a Argentina se viria obrigada a elevar suas tarifas, de zero para 14%. É difícil acreditar que os vizinhos estarão dispostos a dificultar importações de máquinas e equipamentos para modernizar suas indústrias, ou que darão de graça a preferência aos fabricantes brasileiros (únicos a terem direito garantido pelo Mercosul a tarifa zero nas vendas aos argentinos). A preocupação de Mugnaini vai além da boa relação no Mercosul. A Camex é quem decide sobre os pedidos das empresas brasileiras em relação à importação de bens de capital. Por solicitação das indústrias nacionais, o governo concede "ex-tarifários", redução da tarifa, na importação de bens de capital sem similar no país. Pelo cronograma do Mercosul, os quatro sócios terão de unificar sua lista de ex-tarifários neste ano, e acabar com outras exceções a tarifas. Sem saber qual será a política de tarifas para bens de capital, o trabalho da Camex é prejudicado, diz Mugnaini. Começa nos próximos dias no Brasil a preparação para esse debate com os sócios, que não será fácil. A Camex quer identificar o mercado para bens de capital, de informática e telecomunicações, medir a capacidade de produção e o espaço para importados. Desse trabalho sairão decisões sobre o grau de abertura e de incentivo ao setor. "Vamos precisar da cooperação do setor privado", antecipa Mugnaini. E dos sócios no Mercosul, certamente. O tema tem tudo para levantar novo irritante nas relações bilaterais. E, antes que recomecem as diatribes contra a Argentina, convém lembrar: as estatísticas do comércio exterior mostram que o chamado mundo em desenvolvimento já representa quase metade do mercado consumidor externo do Brasil. Isso deve servir de alerta aos que consideram bobagem dar atenção a esses mercados. A Argentina, que, em 2003, absorvia pouco mais de 6% das exportações brasileiras, em 2004 comprou quase 8% (US$ 7,3 bilhões) do que o Brasil vendeu. Segundo o ministério do Desenvolvimento, o superávit no comércio bilateral - ou seja, o que o Brasil vendeu a mais do que comprou da Argentina- chegou a US$ 1,8 bilhão, na primeira vez, em dez anos, que a balança comercial foi favorável ao Brasil.