Título: Crise abre oportunidade de revisão do modelo aéreo
Autor: Sennes , Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 04/10/2007, Opinião, p. A14

A longa crise do setor aéreo nacional remonta os anos 90 e infelizmente teve que chegar perto do colapso para romper a inércia decisória. Não há dúvidas entre os principais analistas que o problema nesse setor é principalmente regulatório e está relacionado com o baixo nível de consenso entre os principais atores sobre o rumo estratégico a ser seguido. A urgência parece ter rompido essa inércia, porém não necessariamente irá garantir decisões estratégicas consistentes.

É vital utilizar o momento para redefinir o papel do transporte aéreo, de passageiros e de carga no modelo de desenvolvimento e inserção internacional do país e tomar decisões consistentes com essas referências. Redefinir o plano estratégico para o setor passa por considerar os objetivos nacionais, o espaço sul-americano e a inserção competitiva global do país. Para isso, seria conveniente discutir e construir parâmetros básicos.

O primeiro deles parte do fato do Brasil ser um país com dimensões continentais com fortes deficiências logísticas. Uma densa e eficiente rede de transporte aéreo pode contribuir para integrar ainda mais o país social e economicamente, aumentando o grau de comunicação entre pólos consolidados no Sul e Sudeste com pontos remotos no Norte e Centro-Oeste, assim como nas regiões fronteiriças. Parte dessa ligação é impossível de ser atendida por questões de custo e rapidez por outros meios de transporte.

Um plano estruturado para a aviação civil pode também contribuir para a redução da assimetria do desenvolvimento regional do país. Vários estudos indicam que a presença de um pólo aereoviário é um grande indutor de desenvolvimento econômico, na medida que viabiliza a instalação de empresas, escoamento de produtos e rápida comunicação com outros centros, além de gerar uma rede de serviços de apoio e fomentar o surgimento de pólos regionais. Essa integração também possibilita o acesso ao mercado externo, vital para viabilizar projetos nos setores de frutas, flores, equipamentos eletrônicos, medicamentos e jóias, entre outros.

Existe um potencial ainda não explorado de integração com o mercado sul-americano. É surpreendente como a região ainda não dispõe de uma rede barata e ágil de vôos entre as capitais e as cidades secundárias. Estudos vinculados ao projeto IIRSA indicam que não existem mais do que 70 rotas principais em todo o continente sul-americano - mais da metade destas rotas (40) são entre cidades principais e as outras 20 conectam cidades principais com cidades secundárias, interligando 45 cidades sul-americanas de 12 países em 1.564 vôos semanais operados por 21 empresas aéreas. É absolutamente pouco para as dimensões do continente e seu potencial econômico para turismo, turismo de negócios e transporte de cargas.

A irracionalidade do desenho dessa malha também é revelada pela inexistência na região de hubs consolidados que conectem os vôos regionais com os internacionais fora da América do Sul. Esses hubs permanecem no exterior, seguem lógicas estritamente bilaterais e retiram da região parte importante da cadeia de valor do setor. Movimento recente, que se iniciou no Ministério de Turismo e depois passou para o âmbito da Anac, já identificou esse ponto, porém ainda foi incapaz para torná-lo uma referência no debate atual.

-------------------------------------------------------------------------------- Fazer ajustes sem mexer no padrão regulatório do setor seria um atentado contra os interesses do país e da América do Sul --------------------------------------------------------------------------------

Após 11 de setembro de 2001 tornou-se muito custoso e demorado utilizar os hubs situados nos Estados Unidos para vôos na região. Isso abriu uma janela de oportunidade para os demais países do continente para estruturarem soluções logísticas fora do território dos EUA. Isso em parte está sendo feito pela empresa Copa, via Panamá, e parte pela empresa Taca, via Lima. Existe espaço para que o mesmo ocorra com Manaus - voltado para a porção norte da América do Sul, e Brasília ou outra cidade no Centro-Oeste para a porção sul da América do Sul.

Existe um vício na discussão pública de deixar para segundo plano o potencial de carga da rede aérea. Em um país como o Brasil e para uma região como a América do Sul isso não faz sentido. Os principais pólos econômicos do continente seguem distantes entre si e, com o crescente barateamento do transporte aéreo, é possível projetar um potencial considerável para o adensamento dos negócios na região baseado na vantagem comparativa dos custos logísticos. Estudo recente da Cepal indicou que a principal barreira para o comércio do Cone Sul do continente com os países andinos é o custo do transporte e não mais as tarifas e demais barreiras regulatórias. Reduzir esses custos significa abrir e garantir um mercado considerável para produtos de alto valor agregado.

Temos uma das mais sofisticadas e competentes indústria aeronáutica do mundo. A sinergia entre essa indústria e os objetivos de integração do território nacional e sul-americano é evidente. Rússia e China estão avançando rapidamente na produção de aviões regionais (além de militares) e é de se esperar um incremento agressivo da competição nesse segmento. Articular imediatamente o plano estratégico para o transporte aéreo com o da indústria aeronáutica poderia consolidar o diferencial competitivo já existente em favor do Brasil.

Essas, entre outras referências, deveriam ser a base para a definição de um padrão regulatório e políticas de incentivos que elevassem o nível da sofisticação, da eficiência e da inserção internacional do mercado aéreo brasileiro. Uma hipótese seria estruturar quatro segmentos de mercado combinando sinergias entre transporte de carga e de passageiros. Malha de vôos regionais entre capitais, malha entre capitais e destinos secundários, malha regional expandida (incluindo cidades de fronteira e nos países da região) e, finalmente, a articulação dessa malha com os vôos internacionais de longa distância.

O momento é mais que oportuno. Fazer os ajustes emergenciais sem mexer na lógica equivocada do padrão regulatório e nos vícios atuais do mercado seria um atentado contra os interesses estratégicos do país e da região sul-americana. O momento demanda ousadia, liderança, recursos econômicos, capacidade técnica e de coordenação política. O país dispõe de todos esses elementos.

Ricardo Sennes é economista e doutor em relações internacionais. É professor de Relações Internacionais da PUC-SP e sócio-diretor da Prospectiva Consultoria Internacional.