Título: Brincando de recomeçar
Autor: Mariz, Renata; Oliveira, Ronaldo
Fonte: Correio Braziliense, 18/01/2011, Brasil, p. 8

Crianças que escaparam das enchentes ajudam, com sua capacidade de adaptação, a dar alento às famílias que trabalham na reconstrução e na busca por vítimas

Teresópolis (RJ) ¿ Em meio aos colchões espalhados nos abrigos ou na lama sobre o que restou de suas casas, os pequenos sobreviventes da tragédia na região serrana do Rio são como uma fonte de alento para toda a desesperança vivida pelas vítimas. Com uma feliz incapacidade de compreender exatamente o que aconteceu, Michele Queiroz de Deus Almeida lamenta, com a mesma intensidade, a perda da casa de bonecas construída pelos pais no quintal e da prima, Flávia, de oito anos. ¿Ela morreu, acharam o corpo três dias depois¿, conta a garota de sete anos, ao mostrar os destroços do local onde mais gostava de brincar.

Lucas Silveira Amaral, um menino que morava em Campo Grande, bairro destruído pelas chuvas, hoje se contenta com os brinquedos doados por voluntários. De triciclo rosa e uma máscara de Wolverine, um dos heróis de X-Men, Lucas mostra quantos amigos já fez no Ginásio Pedro Jahara, mais conhecido como Pedrão, de onde as famílias sem-teto estão sendo retiradas e encaminhadas para abrigos menores, com estrutura melhor. Ele não se recorda bem da madrugada em que sua casa foi tomada pela enchente, mas usa um tanto de imaginação para narrar como sobreviveu. ¿Minha mãe me acordou, aí a gente pegou meu irmão e saímos voando pela chuva¿, diz o garoto, de seis anos.

O garoto não para de brincar no abrigo. Joga bola, corre. Michele, em sua casa no bairro de Vieira, onde restaram algumas poucas casas, incluindo a dela, usa as botas da Barbie para ajudar a mãe e os vizinhos na retirada da lama de dentro dos cômodos. De uma forma ou de outra, as crianças que sobreviveram sem ferimentos ao desastre tornam o dia a dia dos adultos menos amargo. Tímida, Vitória Camila da Cunha Mendes assistiu, de sua casa, felizmente mais alta e distante do rio que encheu e devastou o bairro onde ela mora, a toda a tragédia. Os relâmpagos foram tão intensos que a família da menina acordou, desesperada com o que via. ¿Foi horrível¿, disse, enquanto olhava a paisagem destruída.

João Vitor de Oliveira Gomes, de seis anos, escapou por pouco da morte. Mesmo com a insistência da tia para que ele ficasse na casa dela brincando com o primo, Daniel, ele insistiu que não queria. O lugar foi atingido por uma tromba d¿água e Daniel morreu afogado. Em casa, o garoto é paparicado pela avó, ainda chorosa pela perda do outro neto. ¿Meu Deus, pelo menos ele se salvou¿, afirma Valéria Fagundes Gomes. Enquanto a família tenta vencer a quantidade de lama que inundou a casa, João Vitor brinca de afundar os pés, devidamente protegidos com galochas, no chão, sem dar bola para a destruição que o rodeia.

Rigidez Somente três crianças órfãs, todas hospitalizadas, foram localizadas até agora pela equipe de assistência social de Teresópolis. Isso não significa que elas não tenham tios, avós ou outros parentes próximos. A Vara da Infância e Juventude (VIJ) já fez um levantamento em todos os abrigos, constatando que não há qualquer menor de idade sem ao menos o pai ou a mãe. ¿Caso apareça uma situação de criança totalmente desacompanhada, vamos tentar localizar parentes. Não conseguindo, encaminhamos, com todos os trâmites necessários, a criança para um abrigo apropriado e, posteriormente, ela será incluída no cadastro de adoção¿, destaca Remilda Ramos, auxiliar judiciária da VIJ em Teresópolis. Ontem, o controle de entrada de crianças nos abrigos ficou mais rígido, para evitar desaparecimentos e até eventuais sequestros.

Número de mortos já passa dos 670

Larissa Leite

Na última quinta-feira, logo após sobrevoar a região serrana do Rio pós-tragédia, a presidente Dilma Rousseff afirmou que ¿moradia de risco é regra, e não exceção¿ no Brasil, e anunciou recursos emergenciais para a retirada de moradores dessas áreas, defendendo que o início desse processo jé vem sendo feito, por meio do programa Minha Casa, Minha Vida. Ontem, foi a vez de o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, não apenas citar o programa federal, como sugerir mudanças ¿ quando ele for aplicado na serra fluminense. Para o governador, 100% das moradias da região incluídas no programa devem ser destinadas às famílias que moram em áreas de risco. De acordo com o secretário estadual do Meio Ambiente, Carlos Minc, há pelo menos 5 mil núcleos familiares em locais sob perigo, considerando apenas três cidades da região serrana.

¿Antes, 50% do cadastramento das famílias eram feitos pelo município em questão, e os outros 50% eram por sorteio. Nas cidades atingidas pelas chuvas, 100% das moradias seriam destinadas a pessoas que moram em áreas perigosas¿, disse o governador durante a 2ª Conferência Mundial sobre Justiça Constitucional. O vice-presidente da República, Michel Temer, também participou do evento e considerou a sugestão de Cabral ¿mais do que razoável¿. Durante esta semana, muitos resgates em áreas onde ainda há a possibilidade de desabamentos contaram com a resistência dos próprios moradores, que hesitam em deixar a casa que construíram.

Ao lado dos que ainda têm a casa de pé, já existem mais de 15 mil desabrigados e desalojados na região mais afetada, que soma o número de 672 mortes. Segundo os últimos levantamentos das prefeituras, apenas em Nova Friburgo foram encontrados 318 corpos. Em Teresópolis, são 274; em Petrópolis, 58; em Sumidouro, 20; e em São José do Vale do Rio Preto, 2. Ontem, as chuvas deram uma trégua na região, facilitando o trabalho de forças policiais e de voluntários. Em Petrópolis, por exemplo, militares da Aeronáutica conseguiram resgatar 11 pessoas com vida dos bairros de Poço Fundo e Fazenda do Alemão ¿ no domingo, as buscas no município tiveram de ser canceladas em função do mal tempo. Ontem, o Ministério da Saúde enviou mais de 250 mil doses de vacina dupla ¿ contra difteria e tétano ¿ para o atendimento à população atingida pelas chuvas. A vacina dupla é orientada para uso em unidades hospitalares, para onde estão sendo encaminhadas pessoas com ferimentos e risco de tétano.

Em Teresópolis, deverão chegar, ainda esta semana, tendas doadas pela ONG inglesa Shelterbox, parceira do Rotary Internacional. Cada barraca tem capacidade para 10 pessoas e traz equipamentos de sobrevivência, cozinha separada, fogareiro, panelas, talheres, pratos, cobertor, purificador e armazenador de água. Cerca de 56 barracas, que já estavam no país, devem chegar à cidade até amanhã, onde um empresário doou um terreno de sua fazenda para a instalação do acampamento. Elas foram usadas após desastres como o tsunami na Indonésia e o terremoto no Haiti.

Enchentes são tema da OMS A tragédia provocada pela chuva no Sudeste do Brasil, principalmente na região serrana do Rio de Janeiro, foi tema ontem do discurso da diretora-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Margaret Chan. Ela disse que um dos desafios dos governos que vêm enfrentando esse tipo de problema ¿ no caso, Brasil, Austrália e Sri Lanka ¿ é combater os efeitos das alterações climáticas. Margaret classificou tanto o caso brasileiro quanto os demais como ¿catástrofes naturais¿. A diretora-geral alertou ainda que a crise financeira, registrada no ano passado, atingiu vários programas de saúde. Ela disse que as áreas mais afetadas foram os projetos referentes ao combate à Aids, à tuberculose e à malária. Margaret Chan destacou que é necessário lembrar que os recursos para os programas, que sofreram redução no orçamento em 2010, são usados para várias ações desde a compra de mosquiteiros que protegem contra o inseto que transmite a malária até a aquisição de medicamentos antirretrovirais para o tratamento da Aids. A representante da OMS lembrou que os recursos também são usados para a obtenção de diagnóstico sobre a contaminação do vírus HIV e o tratamento da tuberculose, inclusive a aplicação de vacinas em bebês.