Título: Segredo para reduzir perda é orientar produção
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Fonte: Valor Econômico, 04/10/2007, Finanças, p. C3

José Carlos da Silva Sampaio diz que hoje é "barão". Aos 55 anos, dono de de uma vendinha na periferia de Salvador, ele começou a trabalhar aos 10 anos, vendendo doces em trens de subúrbio, foi carregador e vigilante e há 15 anos abriu seu primeiro comércio, uma padaria em casa - por isso no bairro ele é "Zé do Pão". Na mercearia, bem suprida em relação à concorrência e que lhe rende de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil mensais, o ajudam a mulher e a filha. Nos últimos 4 anos, Zé do Pão já recebeu um total de R$ 63 mil em empréstimos para capital de giro do CrediAmigo, programa de microcrédito do Banco do Nordeste do Brasil (BNB). O último, de R$ 3 mil, está sendo pago antecipadamente para que o comerciante possa tirar novos empréstimos. Em breve ele abrirá uma loja de materiais de construção em Itaparica.

Mostra com orgulho a escritura de dois terrenos com galpão comprados à vista por R$ 10 mil. Ele mesmo está reformando o imóvel e espera abrir a loja assim que tiver os recursos para compra de R$ 5 mil em estoques. No bolso da camisa ainda carrega os cheques devolvidos ou resgatados de agiotas quando fez o primeiro microcrédito. "Era uma preocupação o tempo inteiro. Muitas vezes perdia dinheiro porque precisava vender o estoque rápido". Os juros dos agiotas eram de no mínimo 20% ao mês. Desde 2003, ele atrasou o pagamento da parcela uma única vez.

Experiências como a de Sampaio mostram que as carteiras de microcrédito só são rentáveis se financiam atividades produtivas, com orientação ao empreendedor. Os bancos que tentaram financiar consumo com microcrédito tiveram prejuízo.

Os bancos com maior presença no microcrédito produtivo são o BNB e Real, controlado pelo ABN Amro. O BNB só atua no Nordeste e no norte dos estados do Espírito Santo e Minas Gerais. A carteira do ABN está 25% em São Paulo e o restante distribuído entre Rio de Janeiro e Nordeste. Uma financeira mexicana, Finsol, está começando no segmento, para atuar só no Nordeste.

Segundo a organização especializada na análise de microfinanças Microfinance Information Exchange (Mix), com sede em Washington, o BNB tem a maior operação do país, com 273 mil clientes e carteira ativa de R$ 200 milhões. É a sexta maior da América Latina. A maior operação da região é a Caja Popular Mexicana, seguida pelo Compartamos, também do México, com 616 mil clientes.

Em dez anos no segmento, o BNB já concedeu R$ 3 bilhões. Só neste ano espera emprestar R$ 750 milhões. Mas o grande trunfo do CrediAmigo do banco nordestino é a inadimplência, de apenas 0,9%. O Bradesco, maior banco do país, interrompeu as operações de microcrédito no ano passado com inadimplência perto de 20%.

O modelo usado pelo BNB para redução das perdas combina orientação ao empreendedor, qualificação dos agentes de crédito e remuneração variável vinculada ao desempenho da carteira. O banco tem ainda estratégias específicas para emprestar à baixíssima renda no seu programa CrediAmigo Comunidade.

Cerca de 10% dos clientes acabam abrindo empresas formais. O superintendente de microfinanças do BNB, Stélio Gama Lyra Júnior, diz que ex-clientes do microcrédito hoje tomam R$ 15 mil mensais em capital de giro.

No cerne da sustentabilidade da carteira do BNB está o acompanhamento dos agentes de crédito, que calculam os fluxos de caixa dos pequenos empreendimentos e arbitram a capacidade de endividamento. "Fazemos 3 mil empréstimos por dia e temos 1.400 pessoas envolvidas na operação", conta o superintendente de microfinanças do BNB, Stélio Gama Lyra Júnior. Cada agência tem um comitê de crédito para aprovação das propostas trazidas pelos agentes. O banco contratou recentemente a empresa NeuroTech para criar um credit scoring que facilitará o trabalho dos agentes, com base nos padrões observados na carteira de microcrédito até hoje. A partir do ano que vem, os sistemas de aprovação de crédito serão acessíveis não apenas dentro das agências, mas também via internet.

Com um total de 273 mil clientes, cobrindo 14% da população nordestina que trabalha no setor informal, o BNB quer atingir 500 mil clientes até 2010.

"O retorno da nossa carteira é de 12%, e não usamos recursos públicos", afirma Lyra Júnior. O banco atua só no Nordeste, mas está fazendo um estudo de mercado no Rio Grande do Sul a pedido de um grupo de prefeitos gaúchos. Os prefeitos de Bagé, Santa Maria, Rio Grande, Pelotas e Uruguaiana estão financiando o estudo com o crédito conjunto de US$ 100 milhões no Banco Mundial.

O ABN Real, hoje com carteira de R$ 40 milhões, deve atingir o "break even" (equilíbrio financeiro) neste mês, segundo o presidente da Real Microcrédito, Giovanni Aversa. O banco espera elevar a carteira de 35 mil clientes para 55 mil até o fim do ano, e atingir uma carteira de R$ 130 milhões, que corresponderia a 2% do depósito total à vista da instituição. A inadimplência da carteira do Real está pouco acima de 10%, mas o banco tem 25% da carteira em São Paulo, e o restante entre Nordeste e Rio de Janeiro.

Aversa diz que a inadimplência é naturalmente maior em regiões metropolitanas, mesmo que a metodologia usada seja a do crédito produtivo orientado.

"No Nordeste há uma cultura de microcrédito enraizada e não há tanta oferta de crédito. Nos grandes centros o endividamento é muito maior", diz Aversa. A parcela da carteira do ABN no Nordeste tem inadimplência de 1,3%. No Nordeste o aval solidário funciona bem, principalmente em comunidades menores, porque cria uma pressão social para pagamento do crédito.

Numa tarde de terça-feira na agência Montese, bairro de classe média baixa em Fortaleza, duas costureiras amigas há anos, Francisca Neta e Maria do Socorro Araújo, pediam um crédito solidário de R$ 1.000 para cada uma, mais dois empréstimos individuais de R$ 500. "A gente tem que tomar cuidado para tirar crédito com alguém, tem que conhecer bem a pessoa", diz Francisca.

Trabalhando com capital próprio há dois anos, dona Francisca fatura entre R$ 5 mil e R$ 7 mil mensais e já emprega três costureiras. Até receber um capital de R$ 1.500 do filho mais velho há dois anos, ela fazia apenas "facção"- costura de tecido já cortado, recebendo apenas pelo feitio. Começou a tomar empréstimos no BNB há um ano e meio, e com o lucro mais alto nas peças, alugou um box no centro comercial popular Beco da Poeira para vendê-las diretamente às sacoleiras_ a filha toma conta do stand. Francisca já tem sete máquinas industriais e emprega duas costureiras, pagando R$ 420 para uma e R$ 400 para outra. Quando o movimento está bom, chama mais uma auxiliar, a quem paga mais R$ 250. "Agosto foi muito ruim, tive prejuízo. Mas este mês está bem melhor, minha filha já me ligou ontem pedindo mais vestidos porque ela está vendendo 40 por dia". Maria do Socorro tem uma atividade de porte parecido.

-------------------------------------------------------------------------------- Com juro tabelado em 4%, microcrédito para financiar consumo até agora resultou em prejuízos --------------------------------------------------------------------------------

Nos grandes centros do Sudeste do país o aval solidário não funciona tão bem. Um bairro da periferia paulistana como São Miguel Paulista tem mais de 1 milhão de habitantes, os vizinhos não se conhecem e a pressão social é bem menor.

O ABN Real, que tem uma carteira maior no Sudeste, procura reduzir as perdas usando como referência associações comunitárias, cooperativas ou a inserção na cadeia produtiva. Uma das experiências é financiar microempreendedores inseridos em cadeias produtivas de empresas atendidas pelo banco_ por exemplo, costureiras que trabalham como free lancers para indústrias. "O modelo para microcrédito em grandes centros urbanos ainda não foi estabelecido. A metodologia usada hoje tem como base áreas rurais ou semi-urbanas", diz o presidente da Real Microcrédito, Giovanni Aversa.

A boa rentabilidade do microcrédito no Nordeste está atraindo até instituições estrangeiras. A mexicana Finsol chegou discretamente ao país em abril e instalou as primeiras agências em Pernambuco, Piauí e Maranhão, privilegiando as cidades do interior. Espera expandir-se para todos os estados nordestinos.

Em cinco meses, a financeira angariou 11 mil clientes e concedeu R$ 11 milhões. Valdi Dantas, diretor institucional da Finsol no Brasil, espera chegar a 32 mil tomadores em abril de 2008, com concessão de US$ 20 milhões. E chegar a US$ 200 milhões para 300 mil pessoas no terceiro ano de atividade.

Criada em 2003 por um grupo de 18 empresários e ex-banqueiros, a Finsol começou no México e já tem operações na Bolívia. Hoje tem 270 mil clientes e uma carteira de US$ 130 milhões. Lá, de acordo com Valdi Dantas, diretor da Finsol no Brasil, a instituição fornece créditos de, em média, R$ 1.000, patamar que também deve ser mantido no Brasil. "A Finsol decidiu vir ao Brasil porque as condições econômicas do Nordeste, de crescimento acelerado, chamam a atenção. E queríamos chegar logo, antes que muitas financeiras de microcrédito se instalassem no país", afirma Dantas. No Brasil, a Finsol tem inadimplência de 1,2%, próxima aos patamares mexicanos. A equipe da mexicana tem 75 agentes, a maior parte recrutados da equipe do Banco do Nordeste. "O grande trabalhador desse setor é o agente. Buscando pessoas com experiência, podemos acelerar o nosso crescimento", afirma.

A Finsol também quer começar a venda de seguros de vida para os brasileiros. "No México, quase todo mundo que toma um empréstimo compra um seguro também. É algo barato e muito importante para a população de baixa renda", explica Dantas. No México, o prêmio é de cerca de US$ 3 por mês. A financeira ainda não definiu qual seguradora fornecerá o produto no Brasil.

O BNB já vende seguros de vida aos clientes do microcrédito_ as menores apólices pagam valor segurado de R$ 2,5 mil em caso de morte. O BNB também procura estimular a cultura de poupança, reservando 10% do empréstimo para um depósito em conta de poupança em nome de cada cliente, mesmo nos créditos conjuntos dos bancos comunitários. Cada cliente recebe um cartão magnético de uma conta corrente simplificada, que não paga tarifas nem CPMF. Os cartões funcionam para saque nas agências do BNB e do Banco do Brasil, além da rede verde-amarela, que reúne bancos estaduais. Agora o banco negocia também um acordo com a Caixa Econômica Federal. O BNB também pretende sofisticar ligeiramente o uso das contas bancárias, criando um cartão "private label" com a Visa ou Mastercard para que os clientes possam fazer compras usando a função débito.

O microcrédito também tem ajudado a ampliar a bancarização no país, junto com as instituições voltadas à baixa renda. Só no ano passado foram abertas 7,1 milhões de contas simplificadas, com saldo médio abaixo de R$ 50. A CEF abriu 3 milhões destas contas, o Banco do Brasil, 2,5 milhões (incluindo 1,5 milhão da subsidiária Banco Popular). Já são 143,4 milhões de contas bancárias no país, incluindo poupança.

Para clientes da classe E, com risco de inadimplência ainda maior que o das linhas de microcrédito tradicional, o BNB adota a metodologia dos bancos comunitários (village banks) testada com sucesso na Ásia. A única garantia do banco é um tipo de aval solidário mais rígido, no qual todos os clientes assinam uma única promissória. Como o pagamento parcial não é permitido, calculam-se cotas de reserva que cada cliente traz no momento do pagamento para cobrir um cliente que não possa pagar. Por isso é importante que os bancos comunitários tenham um número grande de clientes - no mínimo 15. Nos bancos visitados pelo Valor no Ceará e Bahia, as cotas variavam entre R$ 4,00 e R$ 8,00.

Outra estratégia específica para a população de baixíssima renda é criar formalismos que reforcem a responsabilidade dos clientes. Entre os rituais estão um juramento quando o banco é aberto e a plantação de uma árvore da qual têm que cuidar e que "crescerá junto com os clientes", nas palavras da assessora de crédito Vanessa Menezes, durante a inauguração de um banco em Itapebussu, cidade do interior do Ceará famosa por sua vaquejada anual. Os bancos também fazem reuniões de pagamento antes do vencimento da parcela, na qual todos devem levar o dinheiro ao tesoureiro, responsável por ir até a agência bancária saldar a parcela. Quem chega atrasado paga multa de R$ 0,50 ou R$ 1.

O que não existe até agora no Brasil é um caso de sucesso de carteiras de microcrédito que financiem o consumo. O Bradesco, maior banco do país, resolveu abandonar o segmento ao enfrentar inadimplência próxima de 20%, que não podia ser compensada com o juro tabelado. O Banco Popular do Banco do Brasil reduziu o prejuízo no primeiro semestre do ano para R$ 10 milhões (ante R$ 25 milhões no ano passado), mas continua enfrentando inadimplência de 25%.

A dificuldade para estabelecer um modelo rentável em grandes centros é o principal empecilho para que os bancos cumpram a exigibilidade de microcrédito criada pelo Banco Central em 2003. Os bancos são autorizados a usar até 2% do total de depósitos à vista em operações de microcrédito, ao invés de recolher o depósito compulsório ao BC sem remuneração. Em dezembro do ano passado, os bancos poderiam aplicar até R$ 2 bilhões em microcrédito, mas a carteira era de apenas R$ 1,07 bilhão. O BC vem mudando as regras para tentar fazer com que os empréstimos superem os 60% da exigibilidade.

O teto de juros, que era inicialmente de 2%, passou a 4%. O valor máximo considerado como microcrédito subiu de R$ 1 mil para R$ 3 mil. Cooperativas de crédito têm limite de R$ 5 mil.

Relatório da Microfinance Information Exchange (Mix) afirma que o Brasil é um caso à parte na América Latina porque as atividades de microcrédito tem sido lideradas por grandes bancos. Além do BNB e ABN Real, o Unibanco está entrando no segmento por meio da Fininvest. No Chile, o Santander tem iniciativas premiadas. Em países da América Latina que têm mais tradição, como Bolívia, Equador, Peru e Guatemala, as instituições são exclusivas do microcrédito.

O CrediAmigo e o Ceape Maranhão, ONG que atua há 18 anos, são as únicas instituições brasileiras no ranking das 100 maiores da América Latina. Segundo fontes da Mix, no ano que vem entrarão no ranking também o Banco Popular do BB e a Cresol, de cooperativas de crédito rural em Santa Catarina. A inclusão da operação do BB é polêmica porque a entidade entende que há subsídio do governo por causa dos prejuízos. A média de rentabilidade do microcrédito na América Latina é de 18% sobre o patrimônio e 3% sobre ativo.

Nos bancos comerciais que entram na área, cria-se uma cultura diferenciada dentro da organização. Gerente regional do CrediAmigo do BNB no Ceará há 3 anos, Severino Pires passou antes por áreas como a de project finance. "Hoje não me vejo mais atrás de uma mesa analisando o fluxo de caixa de um projeto de grande porte. É frio demais", diz. Giovanni Aversa, diretor do ABN Real responsável por microfinanças, já foi superintendente estadual da instituição. "Sempre digo que eu emprestava R$ 100 milhões para uma empresa e não via o efeito daquele dinheiro. Aqui empresto R$ 500 e vejo a mudança numa família". Leva diretores de empresas clientes do Real para conhecer as estratégias de negócio de seus pequenos clientes. O gerente regional do CrediAmigo na Bahia, Joaci Sabino Silva, entusiasma-se ao visitar os clientes. Ex-professor de administração de empresas no Rio Grande do Norte, Silva vê na clientela o objeto de estudo perfeito de fatores de sucesso para o empreendedorismo, tema de sua tese de mestrado. Colaborou Carolina Mandl, de Recife.