Título: O PT e as engrenagens do poder
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2005, Política, p. A6

Um dos cinemas de São Paulo exibe, na mesma sala, em horários intercalados, os documentários "Peões" (dirigido por Eduardo Coutinho), e "Entreatos" (de João Moreira Salles). No primeiro, Lula, o metalúrgico, divide a cena com antigos companheiros de sindicalismo; no segundo, Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato à Presidência, é a estrela. Uma sessão dupla é uma viagem à história do Brasil a partir do final do governo militar, do PT e do próprio Lula. As imagens que pulam das telas, vindas das greves do ABC dos anos 80; o anonimato dos metalúrgicos que fizeram a história mas permaneceram na periferia da megalópole ou desse país imenso, da política e da vida, emprestando a sua contribuição à história da democracia brasileira à ascensão de um líder deles; o próprio Lula, candidato, quase presidente, na campanha de 2002, ainda imbuído da convicção de que estava dando mais um passo definitivo na direção de uma mudança fundamental na política tradicional brasileira - tudo isso, contraposto aos primeiros dois anos do governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva, forçam uma reflexão sobre a força e a vitalidade das engrenagens do poder que submeteram o homem e o partido. Em "Peões", uma antiga companheira de militância sindical de Lula relata a formação de um partido de "fundo de quintal", constando que ele ficara num passado de lutas no qual ela era uma peça importante e deixara de ser. Um relato que impõe uma enorme distância entre o PT criado das greves do ABC e o PT que, no momento do depoimento dado a Coutinho, disputava uma eleição presidencial pela quarta vez, agora com chances inequívocas de vitória. Em "Entreatos", no deslocamento entre um compromisso e outro de campanha, Lula, o candidato, discorre para a câmera de Salles as razões pelas quais um governo petista seria diferente. A razão, dizia ele, residia na força do partido. O PT era a diferença da política brasileira e sua organicidade manteria um eventual governo atento aos seus compromissos históricos. O PT não teria que se submeter, afirma Lula no filme, mas desempenhar o papel de alter ego do governo. Seria fácil atribuir a distância entre o discurso de Lula, em "Entreatos", e a realidade dos dois primeiros anos de governo, simplesmente às engrenagens do poder, ou ainda à chamada governabilidade. Um passeio pela história da campanha eleitoral que levou o PT ao Palácio do Planalto, no entanto, impõem uma lógica de acomodação partidária ao poder hegemônico que é anterior à posse apoteótica de Lula, no dia 1º de janeiro de 2003. A partir de abril de 2002, sucessivos ataques especulativos contra o real, travestidos da roupagem de "incertezas políticas", produziram inicialmente uma mudança no discurso eleitoral do candidato; e, posteriormente, uma virada radical nas decisões programáticas do PT, oficializadas, enfim, na Carta ao Povo Brasileiro, que tinha como principal fiador o doutor Antonio Palocci, mais tarde confirmado como o ministro da Fazenda. As pressões do mercado sobre o candidato levaram de roldão o partido. A virada do PT foi orgânica. A dobra em sua coluna vertebral foi coletiva. Mudou o projeto de poder. O partido, naquele momento, traçou a forma de sua relação com o governo: essas decisões, tomadas ao calor das pressões insuportáveis do capital financeiro sobre a economia brasileira, iriam mais tarde justificar a expulsão de quadros que, na verdade, queriam desempenhar o papel que Lula achava, pelo menos durante a campanha, que o partido teria de ter: o de alter ego do governo. Foi o ponto máximo de um processo de mudança, destinado a moldar o partido ao pretenso conservadorismo da sociedade brasileira. "Carta aos Brasileiros" foi um marco: naquele momento, o PT abria mão, definitivamente, de ser vanguarda. Foi definitivo na vida do partido porque botou uma pá de cal nas lutas intestinas que ainda sobreviviam à investida autoritária do seu então presidente, José Dirceu, que submeteu os grupos ideológicos à lógica eleitoral em dois mandatos sucessivos. Dirceu não viu, enquanto presidente do partido, que a organicidade e diferença do PT, inclusive em relação a outros partidos de esquerda brasileiros, residia no fato de que o partido era a síntese da luta intestina, que dava um poder de voz e de voto às minorias - e essa voz, e esse voto, eram o alter ego dos líderes envolvidos na luta política convencional.

Submissão das minorias destruiu unidade

Talvez Dirceu tenha percebido isso quando, no ano passado, tentou chamar o velho partido, que não mais existia, para pressionar por mudanças na política econômica monetarista do doutor Palocci. Não encontrou eco porque os mecanismos de debate internos foram expelidos por maiorias construídas pelo próprio Dirceu, amoldadas à lógica do poder. Aliás, instrumentos de submissão do partido ao governo foram também reclamados no processo eleitoral pelos agentes do mercado - e também nisso eles foram atendidos. Dirceu, hoje, não consegue mobilizar a sua criatura porque é minoria. Minorias, agora, não contam. Sequer debatem. Não obtém concessões. A ironia da história é a de que o PT, enquanto estava envolvido nas negociações internas destinadas a conciliar divergências entre grupos, conseguia manter uma coesão ímpar na história partidária brasileira, após a decisão tomada. Era uma lógica intrínseca à democracia interna do partido: as brigas se limitavam às intermináveis reuniões colegiadas. Dentro do prédio da rua Silveira Martins, em São Paulo, o PT era vários. De lá para fora, era um. Talvez seja o caso de pensar porque, agora, o PT sequer consegue um consenso para eleger um presidente da Câmara. Antes das eleições de 2002, a direção do PT deu um golpe de mão no grupo liderado pelo também ex-líder estudantil Wladimir Palmeira, tendo como pano de fundo as decisões eleitorais do Rio. Os jornalistas esperavam a definição do diretório - e, atônitos, viam uma assessora do partido prantear a decisão como se ela enterrasse a história do partido. Não era inteligível, naquele momento, o desespero. Afinal, afastar Palmeira era remover o último obstáculo para a estratégia eleitoral do grupo moderado, agora majoritário. Os moderados tomaram o partido e ganharam a eleição. Para conseguir isso, eliminaram o seu alter ego.