Título: ONGs defendem água como bem público
Autor: Daniela Chiaretti
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2005, Internacional, p. A7

Discussões sobre quem é dono do quê aparecem em diversos tópicos da quinta edição do Fórum Social Mundial. O questionamento sobre propriedade lotou salas onde se falou de sementes à água, passando pela manipulação do conhecimento e clonagem. Lançaram-se novos paradigmas, ouviram-se depoimentos e relatos de vitórias contra o neoliberalismo e foram tirados alguns planos de ação. Um dos mais importantes é a "Plataforma Global de Luta pela Água", elaborado pelos grupos que militam na definição da água em um direito humano e no combate às privatizações do setor. O tema lotou salas e tendas em Porto Alegre. Talvez o aplauso mais eloquente foi o recebido pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano no painel "As torneiras abertas da América Latina", uma referência à sua obra mais famosa. Galeano falava sobre o resultado do plebiscito convocado por vários grupos da sociedade civil realizado em 31 de outubro de 2004 no Uruguai, e que, com 65% de apoio nas urnas, aprovou uma reforma constitucional defendendo a água como bem público e dando um basta às privatizações do setor no país. "O plebiscito uruguaio confirmou que a água é um direito de todos e não um privilégio de poucos. Foi o primeiro que se fez na História do mundo. Oxalá não seja o único", disse Galeano. E prosseguiu: "É um episódio que contradiz a tradição da impotência nacional e que mostra que, sim, podemos administrar a água e a vida; que sim, podemos caminhar por nossas próprias pernas; que sim, podemos pensar com nossas próprias mentes. Porque nosso recurso natural mais importante e sagrado se chama dignidade." Foi ovacionado por mais de mil pessoas. Ao lado de Galeano estava o boliviano Oscar Oliveira, líder da revolta popular conhecida como a "guerra da água" de Cochabamba, uma região carente e com sistema de abastecimento baseado na extração de poços e lagoas. "Há 50 anos padecemos de sede e de falta de água", disse o sindicalista. No fim dos anos 90, o governo decidiu privatizar o serviço e o controle passou a uma empresa cuja maior acionista era a norte-americana Bechtel. O efeito imediato foi a elevação das tarifas. Uma professora aposentada passou a ter que destinar 30% de seus ganhos para pagar pelos serviços de água. "Com a privatização, a água deixa de ser um bem coletivo para se transformar em uma mercadoria", diz Oliveira . Sentindo o impacto no bolso, a população se mobilizou. Meses de protestos, bloqueios de estradas e muitas manifestações fizeram que, em 2000, o governo rompesse o contrato com a empresa. O episódio é considerado histórico para os ativistas que lutam contra a expansão da política de privatização dos serviços de água. Há duas semanas, nova manifestação popular em El Alto, na Bolívia, conseguiu reverter outra concessão. Outros palestrantes falaram sobre os impactos da privatização dos serviços de água no Chile e na Argentina - aumento das tarifas aos consumidores, piora na qualidade da água e dívidas das empresas que o Estado teve que absorver foram citados por todos. "No Chile ficou claro que se trata de um excelente negócio para a empresa, mas um péssimo negócio para o País", diz Sarra Larrain, do Programa Chile Sustentable. O caso da Argentina é similar. "As empresas costumam ser as mesmas, braços de gigantes do setor hídrico e elétrico de capital francês, inglês, alemão ou espanhol, as chamadas transnacionais como Suez, Vivendi e RWE", diz Robert Grosse, coordenador da Casa Bertolt Brecht, do Uruguai, uma das patrocinadoras do seminário. No Brasil, em 2000, a Suez comprou a Águas do Amazonas, e se ocupa do tratamento e das redes de distribuição de água e coleta de esgotos de Manaus. Para a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, "o problema da privatização da água não se coloca no Brasil". Não é a opinião da canadense Maude Barlow, uma das mais famosas ativistas da luta pela água. "Ela está errada. O Brasil é um país com recursos hídricos enormes, mas muita gente não têm acesso à água. E as empresas estão de olho." Segundo a ONU, 3 bilhões de pessoas não terão acesso à água em 2025. Para cumprir os Objetivos do Milênio da ONU, o Brasil terá que, até 2025, reduzir drasticamente a carência que existe hoje por boa parte da população aos serviços de água e saneamento. "O risco das privatizações está nesta pressão somada às PPPs, as Parceiras Público-Privadas", diz Silvano da Costa, coordenador brasileiro da Rede Vida, uma rede de ONGs internacionais que milita no tema. Em outro painel, a discussão foi dos transgênicos aos processos de reprodução assistida e clonagem. "Estamos vendo uma mudança de paradigmas para a vida", iniciou Thomas Fatheuer, da Fundação Heinrich Böll, ligada ao Partido Verde Alemão. "A produção dos alimentos transgênicos muda a vida dos agricultores e a nossa. O processo de desenhar mais os bebês, a partir da manipulação de embriões, muda todos os caminhos da vida. Vira uma batalha de patenteamentos." Para a agrônoma chilena Camila Montecinos, da Grain, o processo iniciado pelos transgênicos é "algo que não tem fim". Segundo ela, é uma falácia que os transgênicos ajudarão no combate à fome. "Eles não trazem nada de útil, nem à agricultura, nem à alimentação. Os cultivos transgênicos são menos produtivos porque as sementes têm sido modificadas para serem mais resistentes. Isto enfraquece as plantas que serão menos produtivas". A agrônoma é ainda mais dura: "Trata-se de uma máfia anti-científica. Eles dizem que os transgênicos não são perigosos, mas não investem em estudos que comprovem isso."