Título: Terremoto político
Autor: Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 18/01/2011, Mundo, p. 20

Retorno de Baby Doc ao país levanta especulações sobre intenção do ditador. Especialista da UnB vê cenário delicado

Com uma eleição repleta de acusações de fraude e ainda sem resultado oficial, a volta de um ex-ditador traz incertezas sobre o futuro político do Haiti. O retorno inesperado de Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como ¿Baby Doc¿, é mais uma cena na história de um país marcado pelo terremoto que deixou 250 mil mortos, há um ano, e pela epidemia de cólera. O haitiano, que governou o país entre 1971 e 1986 com mão de ferro, afirma que voltou à terra natal para ¿ajudar¿ o povo. O regresso pode significar a retomada de influência do ex-mandatário na liderança do país, que enfrenta uma crise humanitária e eleitoral.

Baby Doc desembarcou em Porto Príncipe, na noite de domingo, depois de 24 anos fora do país. O ex-ditador foi recebido por uma delegação de ex-funcionários do seu governo. Exilado na França, ele é acusado de desviar fundos e de praticar crimes contra os direitos humanos. De acordo com primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, o ex-mandatário não estava proibido de entrar no país. ¿Duvalier é um cidadão haitiano que regressa a seu país como tem direito. Só espero que isso não complique uma situação que já é tensa¿, declarou à imprensa.

Apesar de a viagem não ter sido anunciada, o desejo do ex-ditador de retornar ao país não é novidade. Em 2004, Baby Doc chegou a declarar que concorreria nas eleições presidenciais, mas desistiu da candidatura. No ano passado, depois do terremoto, anunciou que retornaria ao Haiti, a fim de participar dos esforços de reconstrução. ¿Ele ainda tem uma certa influência política e um certo apelo para grande parte da população. A volta dele é complicada para o Haiti¿, afirma Antônio Jorge Ramalho, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), que morou um ano e meio no país. ¿Alguns empresários e a classe média têm boas lembranças do período de ditadura. Quando ele estava no governo, existia uma certa ordem e não havia tantos problemas de segurança¿, completa.

Baby Doc assumiu o governo haitiano quando tinha 19 anos para tomar o lugar do pai, François Duvalier, conhecido como Papa Doc, eleito presidente em 1957 (leia o Para Saber Mais). Com a ajuda de um grupo armado, ele manteve a ditadura no país, mas não conseguiu controlar os altos índices de pobreza. O ex-ditador chegou a pedir perdão aos haitianos pelos erros cometidos durante o período e continuou a acompanhar o desenvolvimento político do Haiti no exílio, especialmente as eleições de novembro. ¿Ele está percebendo que há uma crise de lideranças, e essa volta pode ser perigosa politicamente, porque ele é capaz de mobilizar grupos econômicos¿, afirma Ramalho.

Alianças Apesar das especulações, é pouco provável que Duvalier consiga ser chamado de presidente novamente. Ele não tem tanta força popular quanto antes, muito menos uma milícia ao seu lado. A visita do ex-ditador pode servir para a formação de alianças com partidos políticos. ¿Um golpe seria muito difícil, e chegar ao governo, mesmo como candidato, também. A estratégia dele vai ser identificar alguém que o represente¿, explica o professor.

As tropas que fazem parte da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) desmentiram ontem que tenham feito a escolta de Baby Doc quando ele chegou a Porto Príncipe. De acordo com o comandante do 1° Batalhão do Exército Brasileiro no Haiti, coronel Ronaldo Lundgren, as medidas de segurança continuam as mesmas. A Anistia Internacional pediu que as autoridades haitianas encaminhem Duvalier à Justiça. ¿Centenas de pessoas foram executadas. Não levar os responsáveis perante a Justiça acabará provocando outras violações dos direitos humanos¿, disse um comunicado da organização.

Colaborou Isabel Fleck

SEM COMENTÁRIOS O ex-ditador Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, cancelou ontem uma coletiva de imprensa na qual falaria sobre seus planos no Haiti, após mais de duas décadas de exílio. De acordo com o porta-voz do ex-presidente, Henry Robert Sterlin ¿ ex-embaixador do Haiti em Paris ¿, o evento não ocorreu porque o hotel não tinha capacidade de abrigar toda a imprensa. Um novo local para o encontro com os meios de comunicação deve ser anunciado hoje. O representante de Duvalier não confirmou quanto tempo ele deve permanecer no país, apesar de o ex-mandatário ter passagem marcada para a França para depois de amanhã.

PARA SABER MAIS Dinastia Doc

O médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, foi eleito presidente do Haiti em 1957. Durante as eleições, ele se mostrou um político popular, porém, quando assumiu o cargo, começou a mostrar um lado autoritário e excêntrico. O mandatário se declarou presidente vitalício em 1964. Com a crueldade do grupo armado Tonton Macoutes (bichos-papões) de um lado e o apoio dos Estados Unidos do outro, conseguiu instalar uma cruel ditadura no país.

Em 1970, Papa Doc apresentou problemas de saúde e obrigou a Assembleia Nacional (Parlamento) a declarar o filho como seu sucessor direto. O presidente morreu um ano depois e Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, assumiu o posto com apenas 19 anos.

Apesar de pequenas tentativas de modernizar o Estado, o novo mandatário tinha o mesmo autoritarismo do pai.

O Haiti sofreu com altas taxas de desemprego, pobreza extrema e falta de investimento durante todo o governo de Baby Doc. No início dos anos 1980, a população começou a se manifestar contra a ditadura, apesar de ser seriamente reprimida. Em fevereiro de 1986, o presidente foi deposto por uma revolta popular, com a ajuda de militares, depois que a família Duvalier foi acusada de desviar milhões de dólares de fundos públicos.

Depois do fim da ditadura, diversos grupos militares e partidos políticos lutaram pelo poder no Haiti. Apenas em 1990, o país se livrou da sombra do governo de Duvalier, quando Jean-Bertrand Aristide assumiu a presidência. Baby Doc se refugiou no sul da França, onde levava um estilo de vida luxuoso. Em 2004, ele anunciou que voltaria ao país para concorrer às eleições, mas desistiu da candidatura.

ANÁLISE DA NOTÍCIA O medo voltou

Rodrigo Craveiro

Em meio a uma crise eleitoral, social e econômica, o retorno de Jean-Claude ¿Baby Doc¿ Duvalier lança o Haiti de volta ao pior de seus tempos, no campo da política. O ditador ainda é sinônimo de um regime de terror. Seu nome desperta a lembrança da temida milícia ¿Tontons Macoutes¿ (¿Tio do Saco¿, em crioulo, uma alusão à figura do bicho-papão). O desembarque em Porto Príncipe, na noite de domingo, demonstra doses de oportunismo e de um sarcasmo assustador. Baby Doc anunciou que voltou ao país para ¿ajudar¿. Segundo as agências de notícias, a estadia pode ser breve: a passagem aérea para a França estaria marcada para depois de amanhã. Como um ditador pode auxiliar uma nação a encontrar a estabilidade política? Existiria uma explicação, que não seja a de provocação explícita, para uma permanência tão curta? Tudo o que Baby Doc pretende, aparentemente, é ¿marcar presença¿. Mas ninguém duvide que o ditador não esteja se articulando para retomar a cena política haitiana.

Seu retorno, por si, representa um terremoto devastador numa democracia cujas estruturas já se mostram frágeis demais. A justificativa de que Baby Doc estaria interessado em demonstrar solidariedade pelo primeiro aniversário da catástrofe também se mostra pouco sólida. Talvez ele queira sobrepor o paternalismo perigoso dos grandes ditadores à decadência de uma sociedade moralmente desmoronada. Talvez Baby Doc queira ¿cumprimentar¿ os haitianos com a mesma mão de ferro que espalhou sangue e horror. A comunidade internacional e, principalmente, as lideranças políticas do Haiti precisam ficar de olhos bem abertos. Tudo o que o Haiti menos precisa, em um momento tão instável, é cultuar um fantasma do passado.