Título: O que é bom para a União, é bom para os Estados
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2005, Opinião, p. A10

Quando se instituiu, em 1997, o programa que permitia à União assumir e consolidar as dívidas mobiliárias dos Estados, com vistas a refinanciá-las no prazo de 360 parcelas, Minas Gerais prontamente aderiu à proposta do governo federal. Em 1998, o governo mineiro assinou o contrato de adesão a esse refinanciamento de sua dívida pública, de acordo com a lei 9.496, que criava o Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados. Minas está em dia com os compromissos que assumiu em 1998, quando parcelou débito de R$ 15 bilhões. O Estado já pagou, até dezembro passado, R$ 6 bilhões. Mas, por obra da perversa lógica de correção em vigor em nosso sistema financeiro, Minas deve nominalmente, duas vezes e meia o que devia sete anos atrás, mesmo tendo sido pagos 40% do valor original, também em termos nominais. O saldo devedor atual é de R$ 36 bilhões, sem que ao menos um centavo fosse contraído como dívida nova. Não se trata de uma situação exclusiva dos mineiros, e sim de todos os Estados brasileiros, uma vez que toda a Federação aderiu ao programa. E a anomalia está perfeitamente diagnosticada. Trata-se do índice que atualiza monetariamente o saldo devedor. A dívida é mensalmente reajustada, de acordo com a variação do IGP-DI, calculado pela Fundação Getúlio Vargas. Na lei que abriu a possibilidade de se consolidar as dívidas mobiliárias dos Estados está explícito que o saldo devedor será corrigido pelo IGP-DI, ou "outro índice que vier a substituí-lo". Então, se não fosse o IGP-DI o indexador do contrato, mas sim o índice oficial da inflação brasileira, o IPCA, calculado pelo IBGE, Minas teria saldo devedor de R$ 30 bilhões, portanto, R$ 6 bilhões a menos. A grande diferença de um índice, o IGP-DI, para o outro, o IPCA, é que o primeiro vem carregado das variações na taxa cambial. Quando o programa de reestruturação das dívidas foi lançado, idealizava-se um câmbio estável, tanto assim que o Plano Real, anunciado em julho de 1994, estava ancorado no dólar. Mas, no ano seguinte à federalização das dívidas, em 1999, o real se desvaloriza 56% em relação ao dólar, como reflexo da crise que levou à moratória parcial da dívida externa russa. Quatro anos depois, em 2002, as incertezas dos investidores quanto ao quadro eleitoral brasileiro resultaram em outra megadesvalorização do real, agora de 24%. Ficou nítido, então, que o mundo ingressara em um ciclo de volatilidade cambial, com os países emergentes tornando-se ainda mais vulneráveis aos ruinosos efeitos dessas súbitas flutuações. A clara percepção dessa crescente incerteza levou a nova administração federal a escolher como prioridade da área econômica a redução do risco cambial sobre as dívidas do país. A parcela da dívida mobiliária federal atrelada ao dólar era de 29,5% no ano de 2001. Em abril do ano passado, essa exposição foi reduzida para 9,3%. O que é bom para a União, é bom para os Estados. Eis aí a comprovação de que os Estados igualmente têm de livrar seus passivos das oscilações cambiais, sobretudo considerando-se que suas receitas tributárias sobem e descem de acordo com o aumento e queda no consumo geral de bens e serviços, como é o ICMS. Figurativamente, podemos dizer que em um prato da balança temos o IGP-DI. No outro prato, temos o ICMS.

O que se pleiteia é a adoção de um indexador que garanta equivalência entre o que os Estados pagam e o que recebem

O mais torturante, em tudo isso, é que os Estados não dispõem de instrumentos para mitigar os efeitos danosos, sobre seus passivos, das sobrevalorizações do dólar. Os Estados não têm como, por exemplo, recorrer às operações de "hedge" cambial, casando suas dívidas, em moedas estrangeiras, com a contrapartida de recebimentos também em moedas estrangeiras. A correção monetária do saldo das dívidas estaduais, tendo o IGP-DI como indexador, tornou-se hoje um dos mais patentes aceleradores de desequilíbrio entre os Estados e a União. Além dessa flagrante agressão ao princípio da igualdade de direitos, somam-se outras supervenientes aberrações, que corrompem e desfiguram o desejado equilíbrio federativo. Fato é que a União movimenta-se com uma liberdade cada vez maior, enquanto os Estados são cada vez mais imobilizados. No caso do programa de reestruturação das dívidas, a troca do indexador está claramente prevista na lei que o criou. O que se propõe é a compatibilização das normas do programa à realidade atual. É incompreensível a resistência em se admitir o necessário ajuste, quando o próprio governo federal aponta como uma das vitórias da política econômica o desatrelamento de parcelas da dívida às variações cambiais. O que se pleiteia para os Estados é a adoção de um indexador que represente a equivalência entre o que se paga e o que se recebe. Hoje, o saldo da dívida com o governo federal sobe de elevador, enquanto as receitas estaduais sobem pela escada. É verdade, sim, que a lei da reestruturação das dívidas dos Estados foi criada e posta em prática por outra administração federal. O refinanciamento das dívidas surgiu dentro de um amplo contexto de reordenamento institucional, que conduziu o país à estabilidade monetária, aos avanços na modernização de todos os níveis da esfera pública, ao respeito às leis do mercado, resguardando-se os controles sociais e os marcos regulatórios. O país encontrou-se, enfim, na dinâmica das mais modernas sociedades. Não pode, agora, na contramão desse almejado processo, recuar à nefasta centralização dos poderes, que significa o enfraquecimento dos Estados, dos municípios, das empresas e das pessoas. Em um certo passado, a sensibilidade de alguns homens iluminados captou o desejo latente, que pulsava nos corações e nas mentes de um povo em construção. O fio condutor da liberdade tinha como ponto de partida o ideal da descentralização, da matriz em relação à colônia. Depois, veio o sonho republicano, de se edificar uma Federação, com autonomia das províncias. O que se constata, hoje, é que estamos ainda lutando por idéias que nasceram lá atrás, em 1789, em lugar chamado Vila Rica. Estamos ainda indexados ao anacronismo colonial.