Título: Governo lucra com agência independente
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2005, Especial, p. A12

Em um momento de indefinição sobre o futuro dos órgãos reguladores no Brasil, um dos maiores especialistas europeus no assunto adverte: os governos não devem ter medo de entregar poderes e dar independência às agências. O cientista político e matemático italiano Giandomenico Majone lembra que a consolidação dessas instituições nos países ricos demorou e também enfrentou problemas, desde a criação da primeira agência, nos Estados Unidos, em 1887. "Houve uma reação dos setores assustados com essas instituições, que provocaram uma discreta mudança na divisão tradicional de poderes dentro do Estado: as agências têm uma função legislativa ao desenhar regras menores e mais específicas, uma função judiciária, ao fiscalizar e punir infratores, e uma função executiva ao implementar as leis vigentes", explica Majone. "Mas a experiência internacional mostra que não há alternativa melhor." Para o especialista, é um paradoxo propor a independência do Banco Central ao mesmo tempo em que se defendem controles mais rígidos sobre os órgãos reguladores. Preservar a autonomia das agências transmite credibilidade e reforça a transparência, segundo o especialista, aumentando a possibilidade de atração de investimentos - aspectos que se tornaram mais importantes com a crescente integração da economia internacional. "Dentro de casa, você pode impor regras e mudá-las por coerção, se assim achar necessário. Numa economia internacional integrada, há menos espaço para métodos coercitivos e só consegue atrair investimentos quem oferece credibilidade." Majone vê o estabelecimento de metas de desempenho para as agências como uma medida viável, mas aponta os problemas oriundos de indicações políticas e critica a possibilidade de criar mandatos, para os diretores dos órgãos reguladores que coincidam com os do presidente da República. Avaliando o atual cerco às agências no Brasil, com a tramitação de um projeto de lei no Congresso e uma série de nomeações políticas para esses órgãos, ele recomenda que qualquer tipo de intervenção "tem que estar delimitada pela lei". Autor de seis livros que abordam os mecanismos regulatórios na União Européia e mapeiam o desenvolvimento das agências nos Estados Unidos, Majone ensina que a sensação de ganho de poder para os que limitam a operação das agências é ilusória. "Uma lição das democracias constitucionais é que elas se tornam mais fortes quando os poderes governamentais são limitados", afirma o professor emérito de políticas públicas do Instituto Universitário Europeu, em Florença, que teve passagens em sua carreira acadêmica por Harvard e pela London School of Economics. Da Itália, Majone deu a seguinte entrevista telefônica ao Valor: Valor: As agências reguladoras no Brasil são relativamente novas e estão vivendo uma crise de identidade. Elas também enfrentaram resistência nos países que hoje têm órgãos reguladores consolidados? Giandomenico Majone: As crises fazem parte de um ciclo comum de desenvolvimento. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, que criaram a sua primeira agência em 1887, os primeiros anos foram difíceis. Houve uma reação dos setores assustados com essas instituições, que provocaram uma discreta mudança na divisão tradicional de poderes dentro do Estado. As agências têm uma função legislativa ao desenhar regras menores e mais específicas, uma função judiciária ao fiscalizar e punir infratores, e uma função executiva ao implementar as leis vigentes. Combinam atribuições distintas e foram chamadas de "governos em miniatura". Valor: E como as crises de identidade foram superadas? Majone: Veio aos poucos a aceitação de que as agências lidam com questões técnicas de uma maneira mais fácil e menos custosa. Há um ganho tanto para o Executivo quanto para o Legislativo, que ficam encarregados de redigir as leis gerais sobre setores da economia, mas se poupam de entrar na parte regulatória, mais tecnicista e detalhada, que vão para o âmbito das agências. Historicamente, vem daí o maior impulso aos órgãos reguladores. Valor: Hoje elas são um consenso na maior parte do mundo?

Se os mandatos são sincronizados, haverá uma excessiva dependência do calendário eleitoral "

Majone: A experiência internacional, pelo menos nos países industrializados, mostra que não há alternativa melhor. Alguns países tentaram e continuam tentando não usar agências, mas não existe alternativa mais viável. No Japão, por exemplo, o governo insiste em regular todo o setor de telecomunicações. Mas isso não é uma solução. Há muita confusão entre as funções operacionais e as regulatórias. Sempre que se misturam as duas coisas, há risco de problemas. Valor: Muitas pessoas dizem no Brasil que o enfraquecimento das agências reguladoras poderá afastar investimentos de longo prazo. Elas têm razão ou estão fazendo terrorismo? Majone: Há uma boa dose de evidência nisso. Em qualquer democracia, você tem eleições e os governantes mudam de tempos em tempos. E governos novos podem mudar o que os predecessores fizeram. Isso leva a incertezas políticas, que são naturais. Se estou planejando investir em um país, olho a legislação e as suas políticas públicas para decidir o que fazer. E o ambiente para investimentos melhora quando se sabe que as regras não mudam abruptamente e de forma arbitrária, que não variam conforme o calendário eleitoral. Do lado dos investidores, é preciso lembrar que mudanças de regras são legítimas nos regimes democráticos, desde que a maioria assim queira e certas disciplinas sejam obedecidas. Valor: Então as agências reguladoras devem ser totalmente independentes em relação ao Executivo? Majone: Nesse ponto, vale a pena fazer uma analogia com a independência dos bancos centrais. Não deixa de ser um paradoxo defender a independência do BC e não defender a mesma coisa para as agências. É forte a pressão internacional para que os bancos centrais sejam independentes, caso contrário a política monetária não tem credibilidade suficiente. Mas o princípio vale igualmente para os órgãos reguladores. Outro problema é que, se os diretores de agências não têm liberdade para decidir e aplicar regras como eles acham que têm de fazer, não podem ser transparentes na prestação de contas à sociedade. Esse era o problema das empresas estatais. Valor: Interferências por parte do governo são sempre indesejáveis? Majone: As agências têm atribuições muito específicas e não lidam com generalidades, mas elas às vezes tomam decisões com conseqüências bem mais abrangentes. Por exemplo, uma agência responsável por questões ambientais pode tomar decisões que afetam o nível de emprego em um país. É preciso reconhecer que alguma forma de intervenção pode acontecer em situações específicas, mas essas próprias intervenções devem ser reguladas para não ferir a independência das agências. Se o governo acha que uma questão em particular extrapola o mandato das agências e precisa ser resolvida no mais alto nível político, tudo bem. Mas deve fazer isso de forma transparente, não nos corredores ou fazendo uma ligação para o diretor da agência. Essas intervenções têm que estar delimitadas pela lei. Valor: No Brasil, o governo Lula tem sido criticado por fazer indicações políticas a cargos essencialmente técnicos das agências e um projeto de lei que tramita no Congresso estabelece mandatos para os diretores de órgãos reguladores coincidentes com os do presidente da República. Isso mina a credibilidade das agências? Majone: As agências reguladoras são órgãos com um alto grau de especialização. Metas de desempenho são freqüentemente viáveis e às vezes até mesmo úteis, mas a questão das indicações é mais difícil. Não dá para fingir que as agências estão completamente desvinculadas da política, no seu nível mais alto. Mas é bom alternar o período dos mandatos, de modo que nem todo mundo na agência vá embora assim que o novo governo assumir. Nos Estados Unidos, os chefes das agências não têm que necessariamente sair quando assume um novo presidente da República, mas eles normalmente renunciam espontaneamente ao cargo, enquanto os demais diretores continuam até o fim dos mandatos. Valor: No Brasil, o projeto de uma lei geral para as agências reguladoras estabelece mandato para os diretores-gerais das agências que coincide com o início do mandato do presidente da República. Isso é recomendável?

Veio aos poucos a aceitação de que as agências lidam com questões técnicas de forma mais fácil e barata"

Majone: Certamente não, é algo a ser evitado. Se os mandatos são sincronizados, há excessiva dependência do calendário eleitoral quando o princípio das agências é justamente libertar as questões regulatórias do ciclo político. Valor: O que um país em desenvolvimento, com órgãos reguladores ainda em formação, precisa aprender sobre as agências? Majone: Que não há alternativa melhor do que agências reguladoras independentes e transparentes. Valor: Então o governo não deve ter medo de delegar poderes às agências? Majone: Exatamente. As democracias precisam ser limitadas em algum ponto. E órgãos independentes, sejam agências reguladoras ou bancos centrais, são uma forma de limitar o poder arbitrário dos governos. Uma lição das democracias constitucionais é que elas tornam-se mais fortes quando os poderes governamentais são limitados. O teórico francês Jean Bodin já dizia, 400 anos atrás, que os reis absolutistas deveriam ter a sua soberania limitada. Se um rei todo-poderoso começa a enganar os súditos mandando emitir moeda, ela vai se enfraquecer e as pessoas vão perder poder de compra, com reflexos diretos sobre o apoio popular para o monarca. Valor: Nos seus livros, o sr. sempre lembra que a independência dos órgãos reguladores não deve ser tratada como fim em si mesmo. Majone: Deve ser vista não como um fim, mas como um meio para ganhar credibilidade e atingir o máximo nível de transparência na implementação e monitoramento das regras. Valor: E a crescente integração da economia global muda o papel das agências? Majone: Hoje, em um mundo cada vez mais globalizado, ganha importância a questão da credibilidade. O governo pode mudar regras o tempo todo, mas se você tem agências reguladoras estáveis e independentes, aumenta a credibilidade e a percepção de segurança por parte dos investidores. Dentro de casa, você pode impor regras e mudá-las por coerção, se assim achar necessário. Numa economia internacional integrada, há menos espaço para métodos coercitivos e só consegue atrair investimentos quem oferece credibilidade.