Título: Entre Doha e Mercosul, Brasil fica com o bloco
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 09/10/2007, Brasil, p. A3

"Entre a Rodada Doha e o Mercosul, o Brasil escolhe o Mercosul", advertiu ontem o embaixador brasileiro na Organização Mundial do Comércio (OMC), Clodoaldo Hugueney, numa das mais duras reações do país na negociação global. Diante da posição de países ricos, o Brasil praticamente condicionou um futuro acordo global à obtenção de flexibilidade adicional para o Mercosul proteger mais produtos industriais sensíveis. Hugueney disse que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, já deu a mesma mensagem a Pascal Lamy, diretor-geral da OMC.

"O Mercosul é um projeto político de integração regional e prioridade absoluta para o Brasil", afirmou. "Por isso a negociação de Doha precisa tornar compatível a liberalização multilateral com a integração regional. Não queremos chegar ao ponto de ter de escolher entre participar mais amplamente da negociação de Doha e ao mesmo tempo provocar uma crise no Mercosul."

A questão é que, como o embaixador define, o "cobertor ficou curto" quando o Mercosul discutiu sua lista comum de produtos sensíveis a serem protegidos. Pela flexibilidade que o Mercosul escolheu no atual texto da negociação industrial, os quatro países podem fazer cortes até 50% menores em 10% das linhas tarifárias que não ultrapassem 10% do valor total importado. Isso significaria proteger cerca de 900 produtos.

Ocorre que, quando as listas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai foram reunidas, ficou claro que as indústrias tinham produtos sensíveis diferentes. A lista consolidada quase dobrou de tamanho. "Quando começamos a avaliar as coisas com profundidade, vimos que havia incompatibilidades", observou Hugueney. "Essa flexibilidade de 10% acaba sendo dividida entre quatro, porque os produtos sensíveis não são os mesmos."

Para selecionar a lista, uma briga é inevitável entre os quatro na busca de proteção para seus próprios setores. O Brasil e a Argentina passaram a defender, como a África do Sul, que uniões aduaneiras de países em desenvolvimento tenham flexibilidade superior a 10% para acomodar situações específicas. A proposta é fortemente rechaçada por países ricos, além de países como Colômbia e Turquia. Uruguai e Paraguai tampouco mostram simpatia particular. O tema voltará à discussão no Mercosul quinta-feira, em Montevidéu.

A União Européia se considera a única união aduaneira verdadeira, negociando assim por 27 países membros. O embaixador europeu, Eckert Guth, foi extremamente duro com o Mercosul, ironizando que sequer é união aduaneira, irritando brasileiros e argentinos pelo seu tom.

Para países industrializados, o que o Mercosul deve fazer é negociar internamente para definir a lista com os 10% de flexibilidade prevista e não pedir mais, porque abre outra discussão, inclusive sobre o que é realmente união aduaneira, algo até agora não definido oficialmente pela OMC.

"Se querem tentar criar enfrentamento dentro do Mercosul através de Doha não é uma boa estratégia", reagiu o embaixador da Argentina, Alberto Dumont, confirmando sintonia com o Brasil pela prioridade ao Mercosul. Ou seja, o bloco está em processo de integração, com várias exceções, e a OMC deve é estimular essa integração, não destruí-la.

Um alto negociador uruguaio, porém, não escondeu seu incômodo com a questão entre Doha ou Mercosul. "Não existe essa escolha", rechaçou, mostrando o problema dentro do bloco. Hugueney minimizou a situação, lembrando que o Itamaraty trabalha com uruguaios e paraguaios para chegar a um entendimento.

Cada um eleva o tom quando as coisas "ficam sérias" na negociação. A própria situação no Mercosul, com tarifa externa comum (TEC) e dividido, estava prevista. Só que um acordo também parece ficar mais distante.

E as pressões aumentam. O secretário de Comércio Exterior da França, Henri Novelli, visitou ontem Lamy e saiu da OMC considerando "injusto" que Brasil e a China sejam considerados países em desenvolvimento diante de sua importância geopolítica e comercial. Com esse tipo de argumento, já reiterado dezenas de vezes pelos franceses e outros europeus, Novelli quer tentar justamente mais flexibilidade para frear a entrada dos principais produtos agrícolas exportados pelo Brasil, como carne bovina, frango, açúcar e outros.

Hoje, uma aliança de países em desenvolvimento, articulada pelo Brasil, insistirá na OMC contra o que qualifica de "desequilíbrio" entre as negociações agrícola e industrial.