Título: Países emergentes são acusados pelos EUA de querer o fim de Doha
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2007, Brasil, p. A6

já combalida Rodada Doha voltou a se aproximar do colapso total, com acusações recíprocas e aprofundamento do racha entre países desenvolvidos e em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC). Os Estados Unidos reagiram duramente a uma proposta do Brasil, Argentina e África do Sul por flexibilidade adicional para as indústrias do Mercosul e da Sacu (a união aduaneira da África Austral), advertindo que isso "pode significar o fim da Rodada Doha".

A reação dos ricos foi motivada também por outras demandas do bloco em desenvolvimento, com cerca de 90 países, que Brasil, Índia e África do Sul conseguiram organizar. O bloco pede mudanças estruturais no texto de base da negociação industrial e responde a pressões da representante comercial dos EUA, Susan Schwab.

O bloco reitera que só haverá progressos na negociação industrial depois do resultado da negociação agrícola e considera inaceitáveis cortes maiores nas tarifas de nações em desenvolvimento do que nas dos países ricos. A Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) calcula que o texto industrial significa corte nas tarifas consolidadas de 21% nos EUA, 23% na União Européia, comparado a 58% no Brasil, 62% na Índia, 42% na África do Sul e 28% na China.

O bloco em desenvolvimento diz ser crucial obter flexibilidades maiores na área industrial. Brasil, Argentina e África do Sul querem espaço maior para o Mercosul e a Sacu protegerem mais produtos industriais, a fim de preservar as tarifas externas comuns. A mensagem é que o texto industrial precisa ser amplamente alterado.

As reações dos "elefantes" do comércio mundial, contudo, foram categóricas. "Essa proposta pode sinalizar o fim da Rodada Doha", declarou ao Valor o porta-voz comercial dos EUA, Sean Spicer. "Enquanto os EUA e outros têm mostrado claro compromisso em ir adiante, essa proposta marca um retrocesso importante e na direção errada." A União Européia também avisou que o texto do mediador da negociação "é razoável, documentos alternativos não sao necessários e estamos esperando outros na mesa para negociar".

A atual fase de negociação era para aproximar posições em direção a um acordo final, após seis anos de negociações, mas a história se repete, com endurecimento de todas as partes. A Argentina, com posição forte na área industrial, sinalizou logo o perigo para Doha: "Esse é um barco pesado, se não for girado a tempo a colisão com o iceberg é inevitável", avisou o embaixador Alberto Dumont.

Em escritórios importantes da OMC, o clima de hostilidade e os debates negativos ao longo do dia deflagraram o sinal de alarme. O diretor-geral, Pascal Lamy, porém, considera que o aprofundamento da discussão geralmente leva a esse tipo de cenário.

A maioria dos negociadores ataca os EUA pelo impasse. Na agricultura, os americanos são "seletivos", mas na área industrial pedem "concordância incondicional". Já o embaixador americano na OMC, Peter Allgeier, acelerou a crítica aos grupos em desenvolvimento, conduzidos por Brasil, Índia e África do Sul. "Agora não é mais tempo para se dizer o que não se quer, é tempo para dizer o que estão prontos a fazer em agricultura e na área industrial", afirmou enfático.

O alvo de Allgeier foi sobretudo a demanda de Brasil e Argentina por flexibilidade adicional para o Mercosul. Para ele, o Brasil está querendo "virar de cabeça para baixo" a OMC. "Dizer que países devem (liberalizar) menos, porque estão em uniões aduaneiras ou em outros acordos preferenciais, é se desviar da OMC", argumentou. "A OMC é sobre liberalização multilateral e não devemos abrir precedentes para arranjos especiais." Sinalizou que os EUA estavam prontos a examinar "necessidades específicas e bem definidas" para certos países protegerem mais suas indústrias, mas não para o Mercosul.

A constatação de Dumont, embaixador argentino, foi rápida: "Os EUA estão de acordo para acomodar todo mundo, menos nós (Argentina, Brasil e África do Sul). E querem que esqueçamos flexibilidade adicional para uniões aduaneiras. Para o Mercosul essa é uma questão fundamental."

Nos corredores da OMC, importantes personagens da negociação consideravam "preocupante" se a advertência do Brasil - de que prefere o Mercosul a Doha, caso não obtenha mais flexibilidades para sua indústria - for para valer e não meramente tática de negociação.

A resposta do embaixador brasileiro, Clodoaldo Hugueney, veio logo. "Nossa posição é sólida e podem ficar preocupados, porque não há dúvidas sobre isso. O Brasil tem o objetivo político de fortalecer e preservar o Mercosul, consolidar a TEC, acabar com as exceções. E temos que encontrar soluções para compatibilizar Doha e o Mercosul. A rodada tem que preservar as uniões aduaneiras." Para os EUA e a UE, porém, o Mercosul não é união aduaneira completa, com numerosas exceções. Para a UE, "só há duas uniões aduaneiras no mundo, a UE e a Sacu", segundo seu embaixador, Eckert Guth.