Título: Energia elétrica em nova encruzilhada
Autor: Leite , Antonio Dias
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2007, Opinião, p. A14

Sou muito antigo e tive o privilégio de poder acompanhar de perto a evolução da política energética nacional, inclusive com a oportunidade de participar, em certo período, de sua formulação. É uma história de grandes sucessos e de alguns desastres, de sucessivas reformas institucionais e de crises periódicas de várias naturezas.

Encontramos agora nova encruzilhada que é mais complexa do que as surgidas antes, com maior número de fatores a considerar, tendo em vista a constatação, dramática, da mudança climática, sua relação com emissões de gases de efeito estufa e o clima emocional que daí adveio. Além da tradicional regulação do sistema elétrico, os Estados foram compelidos a se ocupar da defesa do meio ambiente e criar os correspondentes organismos executivos. No Brasil isso foi feito com ampla legislação e insuficiente capacidade de gestão.

A par da ação oficial criaram-se e fortaleceram-se grupos de ação sob a forma de Organizações Não Governamentais (ONGs), muitas das quais trazendo valiosas contribuições para o encaminhamento de soluções, outras infelizmente trazendo tumulto. No campo restrito das relações entre energia e meio ambiente, e no horizonte de duas ou três décadas, a nossa tarefa consiste em conter a expansão da demanda de energia e assegurar o seu suprimento mediante a utilização das fontes e processos disponíveis no período que resultem no menor mo dano possível ao meio ambiente. Há que deixar de lado tanto propostas fantasiosas, que requeiram modificação súbita de hábitos das populações e de estruturas econômicas, como a oferta de tecnologias promissoras ainda longe de comprovação comercial.

Para dificultar o problema já complexo de escolha de caminhos de compatibilização de energia e meio ambiente, a ele se associou a questão da repercussão social das grandes obras de engenharia necessárias ao aumento da oferta de energia. Mas essa contradição tem natureza distinta do desafio ambiental. Trata-se de questão jurídico- ética envolvendo o interesse comum da sociedade que se beneficia da energia a ser oferecida e legítimos interesses particulares de grupos de pessoas que, de alguma forma, material ou moral, são prejudicados pela obra. São questões a serem resolvidas mediante negociações entre as partes, de forma a não tumultuarem o processo de licenciamento ambiental.

No Brasil, a controvérsia está hoje centrada nos projetos de grandes hidrelétricas e seus reservatórios na bacia amazônica, região traumatizada com a expansão de atividades econômicas, que ali vem sendo feita de forma predatória. O Ministério de Minas e Energia contribuiu, aliás, para a agressão, com a usina de Balbina, em cujo projeto se cometeu erro exemplar de desproporção entre o dano causado pela extensa área inundada e o pequeno benefício decorrente da energia gerada.

Novos estudos das numerosas oportunidades na bacia amazônica vão sendo agora retomados pela recém-criada EPE com base em critérios mais rigorosos hoje requeridos no licenciamento ambiental. Na busca de mais energia com menor dano ao meio ambiente, torna-se indispensável avaliar cada projeto quanto ao mérito próprio, técnico e econômico que possa ser comparado, do ponto de vista ambiental, com soluções alternativas exeqüíveis, e igualmente estudadas, para o atendimento da mesma demanda.

-------------------------------------------------------------------------------- Um conjunto eclético de projetos realistas podem ampliar a oferta, pois não há soluções que atendam a todos os requisitos --------------------------------------------------------------------------------

Afora as grandes hidrelétricas, não são muitas as alternativas ambientalmente aceitas e economicamente exeqüíveis para atender a tempo a demanda futura. Em primeiro lugar vêm as usinas térmicas a bagaço de cana, cuja expansão está em curso, requerendo-se, todavia, cautela quanto a excessos na ocupação do espaço geográfico. Contribuições complementares são a da energia solar mediante instalação dispersa de coletores para aquecimento de água, caso paradigmático de coincidência técnico-econômica e ambiental, e a da energia eólica, restrita a algumas localizações privilegiadas.

Mesmo que todos recursos sejam plenamente utilizados, não serão capazes, em conjunto, de atender ao acréscimo da demanda prevista no próximo decênio. Impõe-se atribuir grande atenção à contenção da demanda via conservação de energia que é, em tese, a solução ótima, tanto do ponto de vista físico como ambiental, no curto e no médio prazo. São muitas as situações em que a conservação conduz também a resultado econômico positivo mediante aumento da eficiência na produção, transporte e uso final da energia, tornado possível por novos equipamentos, métodos de trabalho e disciplina no consumo final.

Mesmo assim, presume-se que persistiria um déficit a ser coberto por três tipos de solução que se oferecem: reviver as grandes hidrelétricas; construir a usina de Angra II e preparar a entrada a partir de 2016 da nova geração de nucleares que está saindo da prancheta; e, finalmente, aceitar grandes termelétricas a carvão ou a óleo combustível, já que não há indicação segura de disponibilidade futura de gás natural nem de desatamento do nó a que está preso o setor. De qualquer forma, a construção da capacidade de oferta de energia há de ser feita mediante um conjunto eclético de projetos realistas, já que não existem soluções que atendam simultaneamente aos melhores requisitos técnicos, econômicos, ambientais e sociais.

O quadro é preocupante, mas não insolúvel, se nos dispusermos coletivamente a rever posições intransigentes, procurando estabelecer com urgência, para que não se agrave o impasse em que nos encontramos, diálogo realista e construtivo entre empresários, organismos governamentais e organismos não-governamentais, em busca do bem comum, incluindo-se nele os membros do Ministério Público.

A ação conjunta teria por principais objetivos simultâneos a contenção da demanda via eficiência energética e a retomada do exame honesto de grandes projetos hidrelétricos, que são e deveriam continuar a ser ainda por algum tempo, na medida do possível, a espinha dorsal do nosso original sistema elétrico, baseado em fontes renováveis.

Antonio Dias Leite é professor emérito da UFRJ, ex-ministro de Minas e Energia e autor de "A Energia do Brasil" (Campus). E-mail: adleite@amchamrio.com.br