Título: Conflito de terras envolve projeto da Alcoa
Autor: Ribeiro , Ivo
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2007, Empresas, p. B12

A doze metros de profundidade, sob a úmida, calorenta e espessa floresta está adormecida há milhões de anos a bauxita. A rocha de cor avermelhada, cujo nome vem da cidade francesa Les Baux, abriga o mineral de onde se extrai o metal alumínio. Ela se espraia em camadas médias de seis metros de altura por vastos platôs amazônicos, em terras a perder de vista, que somam dezenas de milhares de hectares e margeiam o Amazonas, no extremo oeste paraense. Para se chegar até os veios de bauxita, viaja-se cerca de 50 km, cortando caminhos por onde madeireiros já retiraram ilegalmente muita madeira boa, de lei, da floresta.

Essa riqueza, que começou a ser descoberta nos anos 70, traz esperanças de desenvolvimento e melhorias de vida aos habitantes da quase desconhecida Juruti - um município precário, de pouco mais de 34 mil habitantes. Mas também é fruto de um conflito que envolve muita gente: comunidades que dizem viver na região das jazidas desde o século XIX, o governo do Pará, a União, as famílias Valle Miranda e Abreu, que munidas de vasta documentação garantem ser titulares dessas terras desde 1972, o Ministério Público Federal e o Estadual, até irmã Fátima, integrante de uma congregação religiosa. Ela reside há 30 anos em Juruti Velho e é contrária à instalação do projeto.

Trata-se de um cipoal de interesses diversos, cujo principal alvo é o bilionário projeto que a multinacional americana Alcoa, produtora de alumínio, está erguendo em Juruti. A empresa quer extrair a bauxita da terra e depois transformá-la no metal que é usado para fabricação de inúmeros bens e utilidades - de panelas a automóveis e aviões. Suas reservas estão avaliadas em 700 milhões de toneladas, ficando entre as maiores do mundo.

O investimento para retirar o material de debaixo da terra é gordo: R$ 1,8 bilhão só na primeira fase. O plano inicial prevê produzir por ano 2,6 milhões de toneladas, mas em algum tempo poderá quadruplicar esse volume. Para isso, constrói um terminal portuário para receber navios de grande porte que levarão o minério para ser processado fora, uma ferrovia de 55 km e instalações para beneficiar o minério no meio da floresta. Tudo isso está em curso, com metade das obras físicas avançada. O primeiro carregamento já tem data marcada: 31 de agosto de 2008. Começa a corrida contra o tempo. E contra outras intempéries.

É que decisões da Justiça poderão interferir nesse cenário. Três ações judiciais correm simultaneamente em tribunais paraenses, de Manaus (AM) e até em Brasília, envolvendo os Valle Miranda e Abreu, a União, o governo do Pará e a Alcoa. Com esse emaranhado, o caso foi parar na Casa Civil, pasta conduzida por Dilma Rousseff. Lá já houve três reuniões coordenadas por Marcelo Cardona, do Ministério de Desenvolvimento Agrário, acompanhadas ao vivo por Telton Corrêa, do gabinete da ministra. Foi criado um Grupo de Trabalho cujo objetivo é encontrar uma solução rápida para o conflito. O GT é formado por representantes do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - Marcos Kowarich, diretor do órgão em Brasília, e Pedro de Aquino, superintendente regional de Santarém -, do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), da Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Sema), do DNPM e da Alcoa, além da Advocacia-Geral da União.

O projeto é de interesse tanto do governo federal, que o inclui entre as obras estratégicas do seu programa de crescimento, o PAC, quanto da governadora paraense, Ana Júlia Carepa (PT). A determinação de ambos é que sejam removidos todos os obstáculos, dentro dos trâmites legais, para que o projeto Juruti, como ficou conhecido o empreendimento da Alcoa, não sofra qualquer tipo de paralisação. É visto como um importante gerador de empregos no Pará e, por tabela, no Maranhão. Com essa bauxita, a Alcoa fará expansão de sua fábrica de alumina na Alumar. No futuro, poderá montar outra em Juruti.

Se depender dos Valle Miranda e Abreu, a obra pode ser paralisada a qualquer momento. Eles têm uma ação em curso no fórum de Óbidos (PA), comarca de Juruti, desde 2005, na qual pedem ao juiz uma liminar para suspender todas atividades da empresa na área. Consideram que a Alcoa está operando de forma ilegal dentro de suas terras, que asseguram medir 222 mil hectares. Alegam que a empresa não pediu as devidas autorizações exigidas pela lei de donos de áreas onde existam jazidas minerais.

A empresa diz que buscou as devidas servidões nos cartórios, mas depois se deparou com diferentes requerentes de titularidade das terras. "A Alcoa tem como objetivo extrair a bauxita no subsolo, dentro das regras da legislação mineral brasileira, e ressarcir quem for o real superficiário da área que a Justiça apontar", afirma Tiniti Matsumoto, diretor da empresa encarregado da implantação do projeto. "A companhia se aproveita de toda essa complexidade documental e baseia-se em informações do Incra e Iterpa para ganhar tempo", rebate o advogado das famílias, Arnaldo Andrade da Silva, do escritório Andrade da Silva Advogados Associados, de Belém.

Na contestação, os advogados da multinacional - o escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello Guimarães, Pinheiro e Scaff - afirmam que as terras eram devolutas da União e que eram "áreas absolutamente desocupadas e inviáveis à atividade produtiva e até para ocupação humana" e "que eram alvo de disputa com o Incra e o Iterpa". Apontam que após analisar os documentos de titularidade das famílias concluiu-se que "seriam facilmente anuláveis, visto que estavam viciados por diversos motivos".

As áreas requeridas pelo grupo Alcoa, que inclui a Omnia Minérios, somam 88 mil hectares na propriedade que os Valle Miranda e Abreu atestam ser sua, conforme documentos do DNPM-Departamento Nacional da Produção Mineral apresentados por Andrade.

O advogado recorre à cadeia dominial de titularidade da área, conhecida como Vila Amazônia, desde 1927 aos dias atuais, para comprovar que seus clientes são os reais e legítimos donos. A gleba é originária de uma concessão dada naquele ano pelo Estado do Amazonas à colônia japonesa para montar um projeto agrícola (ver quadro). Ele mostra uma pilha de decretos, atos, certidões, sentenças de juízes, cópias de escrituras, dentre outros documentos anexados às ações. "É a sustentação legal de que o imóvel, vendido pelo Banco do Brasil, foi comprado de boa fé pelos meus clientes", afirma.

Entre eles, exibe um decreto do presidente Getúlio Vargas de 1943 que tornou a Vila Amazônia, com 300 mil hectares, espólio de guerra, confiscada no mesmo ano dos japoneses. Foi a leilão público pelo banco em 1946, após quatro anos ocupada pelo Exército. Disse ainda que o Incra continua cobrando das famílias impostos sobre a área. "É mais uma prova que reconhece a posse".

Mas a questão não pára aí. Sobre a mesma área paira interesses da própria União, via o Incra, que em 1981 arrecadou 91 mil hectares. A essa terra deu o nome de Gleba Juruti Velho, onde vivem de 2 mil a 2,5 mil famílias em dezenas de comunidades, as quais também alegam ser as verdadeiras donas da terra. Dizem que seus antecedentes chegaram ali nos anos de 1800.

Os Valle Miranda e Abreu contestam a arrecadação feita pelo Incra desde 1990 na Justiça, em ação que foi parar nos tribunais de Brasília. Pediu que fosse feita a desapropriação indireta de toda a área (222 mil hectares), uma vez que o Incra já havia desapropriado 78 mil hectares do lado do Amazonas, em Parintins, em 1987. Alegam que, com isso, mais da metade da área passou a domínio do Incra. "A arrecadação foi feita de forma totalmente irregular, à revelia dos seus donos, que haviam adquirido a Vila Amazônia em 1972, e desconsiderando o registro da área em seus nomes no cartório de Óbidos desde 1979", afirma Andrade.

Marcos Kowarich, diretor de programas do Incra, designado para acompanhar o caso e participar das reuniões do GT, afirma que "o Incra é o legítimo possuidor da gleba Juruti Velho". Segundo diz, a arrecadação levou um ano, teve portaria no Diário Oficial da União e em jornais de grande circulação e que o ato cumpriu todas as formalidades, sem contestações. Ele afirma que as famílias são invasoras da área. "O governo do Amazonas não poderia jamais ter concedido terras no Pará". Kowarich contesta a homologação judicial dos marcos da propriedade pelo juiz de Parintins. "Está eivada de vícios".

O diretor do Incra acusa a Alcoa de cometer algumas irregularidades sobre outra área de assentamento, o Socó, onde passará a ferrovia, sem ter pago os devidos danos sobre a superfície da terra. Tiniti, diretor da empresa, refuta a afirmação. Informa que foram gastos R$ 3,5 milhões em compensações individuais e R$ 10 milhões estão previstos para as coletivas. "Tudo feito sob a anuência do Incra".

Em 2005, o Incra decide criar um Projeto Agro-Extrativista (PAE) para a gleba, depois de já terem sido concedidas pela Sema as licenças iniciais ao projeto da Alcoa. Em casos como este, conforme a lei, a mineração tem preponderância sobre projetos de assentamento. "Esse projeto do Incra é irregular, pois é inconstitucional criar assentamento em área de mineração, que tem preferência sobre qualquer tipo de utilização do espaço, inclusive para fins de reforma agrária", afirma Flávio Rabelo Mansos, procurador do Estado do Pará e diretor jurídico do Iterpa. Kowarich informa que houve autorização dos ministérios públicos federal e estadual, reconhecendo o direito fundiário.

O Iterpa também pôs mais lenha na fogueira. Entrou com ação em Santarém, representando o governo do Pará, na qual pede que seja anulada a titularidade dos Valle Miranda e Abreu. Com isso, complicou ainda mais o que já era complicado, ao bater de frente com interesses do Incra na gleba Juruti Velho. "São áreas diferentes, pois a ação só envolve mais da metade da área do Abreu [131 mil hectares]", diz Mansos. Na ação, à qual o Valor teve acesso, o procurador que a assina, Ibrahim José das Mercês Rocha, reivindica "todas as terras do lado do Pará" em poder das duas famílias e aponta 300 mil hectares.

Rocha acusa as famílias de grileiras, contestando toda sua documentação; diz que o governo do Amazonas cedeu em 1927 terras que eram do Pará irregularmente para a colônia japonesa e não reconhece a legitimidade do Banco do Brasil na venda pública do espólio de guerra feita em 1946. Para o advogado Andrade, é estranho que só 34 anos depois da compra e registro do imóvel o Iterpa queira anular sua titularidade, com base em parecer de ex-funcionário, agora seu consultor. "Os documentos têm o registro do Estado do Pará, pois os cartórios ficam na hierarquia do Tribunal de Justiça. Eles questionam atos do próprio Estado".

Mansos é taxativo. "São terras do Pará concedidas pelo Amazonas a terceiros; por isso, estamos tomando todos os meios legais para reverter esse ato e preservar o patrimônio público do Estado". "Como eles [as famílias] têm um título bem quente na mão, que vão cobrar do Estado do Amazonas", acrescenta. No entanto, admite que "a melhor saída [para o caso] é um concerto negociado, com todos os atores pondo seus interesses na mesa".

Promotores públicos do Pará e procuradores do MPF também questionam o projeto da Alcoa, principalmente nos aspectos ambiental e social envolvendo comunidades de Juriti Velho. Apontam impactos da lavra da bauxita na cultura, atividades de pesca e caça, extrativismo da castanha e outros frutos e no lago Juruti Grande ao redor do qual vivem. Ação de 2005, assinada pelo promotor do Pará Raimundo Moraes e por colegas do MPF, pede à Sema o cancelamento das licenças ambientais e novo plano, mais completo, de proteção ambiental, além de diálogo e compensações às comunidades.

O secretário da Sema, Valmir Ortega, disse não ver razão, até agora, para cassar as licenças. Segundo ele, foram feitas exigências à empresa que resultou numa lista de 54 itens de ajustes e novas condicionantes para manutenção da licença de instalação. "Pedimos também maior atenção no relacionamento com as comunidades". A seu ver, o maior problema é ainda o conflito jurídico sobre a titularidade da área.

Geordenor Pereira dos Santos, presidente da Associação das Comunidades da Região de Juruti Velho (Acorjuve) ataca o projeto. Aponta que um dos principais impactos será a derrubada de milhares de castanheiras. "Duas mil famílias sobrevivem disso". A Alcoa informa que o número afetado nos platôs - onde está o minério e "não há água" - é bem menor. "A lavra que chegará mais perto do lago será a três quilômetros e isso só ocorrerá daqui a 18 anos", diz Matsumoto. Santos reivindica atendimento de vários pleitos das comunidades. Ela diz que ele se nega a participar de encontros que faz com representantes de Juruti.