Título: Disputa no governo eleva risco de apagão
Autor: Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 21/09/2007, Brasil, p. A6

Leo Pinheiro/Valor Ildo Sauer: por pressão da ministra, pode deixar a diretoria da estatal Uma disputa intestina no governo, envolvendo a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e a Petrobras, se arrasta desde o início do primeiro mandato do presidente Lula e é apontada como uma das razões para o risco de apagão de energia nos próximos anos. Dilma e a diretoria da Petrobras divergem fortemente sobre os rumos do setor elétrico. As discordâncias praticamente paralisaram a geração termelétrica nos últimos quatro anos e põem em risco o abastecimento dessa fonte entre 2008 e 2010.

Em carta enviada à Petrobras em abril, o então ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, afirmou que esse período será de "forte dependência de geração termelétrica para complementar a matriz energética". "A oferta de gás natural [para as térmicas] é variável fundamental na definição dos parâmetros que simularão as condições de atendimento para esse horizonte temporal", advertiu Silas, no documento ao qual o Valor teve acesso.

A situação se agrava, porque, segundo estimativa da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), já há, para 2011, previsão de déficit de energia de 1.400 megawatts médios. O quadro preocupa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Após comandar pessoalmente, no início de agosto, reunião emergencial do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), o presidente fez afirmação que definiu bem o ambiente do encontro, marcado por debates calorosos: "Saio daqui mais preocupado do que entrei".

As divergências no governo têm origem numa disputa de poder e remontam à transição do governo Fernando Henrique Cardoso para a gestão Lula, em fins de 2002. Na ocasião, ao montar o ministério, o presidente colocou Dilma Rousseff nas Minas e Energia, em vez de Luiz Pinguelli Rosa, seu aliado histórico e um dos responsáveis pela elaboração do programa energético em todas as campanhas petistas.

Pinguelli era o candidato da ala esquerdista do PT. Foi nomeado para a presidência da Eletrobrás como um prêmio de consolação, mas ficou no cargo apenas até maio de 2004, quando foi obrigado a ceder o posto para o PMDB. Outro aliado histórico de Lula - o professor Ildo Sauer, da USP - foi nomeado diretor de Gás e Energia da Petrobras. O mercado cogitava que ele poderia ser afastado hoje em reunião do Conselho de Administração da estatal, presidido por Dilma, mas o Valor apurou que isso não ocorrerá neste encontro.

Críticos do modelo "liberal" adotado por FHC no setor elétrico, Pinguelli e Sauer protagonizaram discussões tensas com a ministra e com outros integrantes da cúpula da equipe de transição. Para ambos, a gestão Lula deveria romper com o modelo anterior e, na prática, sepultar o projeto de criação no país de um "mercado livre" de comercialização de energia.

O modelo do governo FHC permitiu que os grandes consumidores (acima de 3 mil KWh) passassem a escolher livremente o fornecedor de energia. Com isso, na avaliação dos críticos, autorizou-se que os consumidores rompessem contratos de longo prazo, geralmente de 30 anos, firmados entre as distribuidoras e as geradoras estatais de energia hidrelétrica.

Preocupada com o impacto que uma mudança brusca de modelo poderia provocar na imagem do país e também na do governo que tomava posse, a cúpula da equipe de transição de Lula, chefiada por Antonio Palocci, optou por não alterar as regras. Decidiu, no entanto, abrir a discussão para a montagem de um novo modelo de funcionamento do setor elétrico. Na opinião dos petistas mais à esquerda, ao fazer isso, o nascente governo Lula cedeu às pressões das grandes empresas, principais beneficiárias do "mercado livre".

Ironicamente, foi na gestão Lula que, de fato, esse mercado se desenvolveu. Até 2002, os consumidores do "mercado livre" representavam apenas 2% da energia produzida no país. Hoje, são 30%, e metade do consumo industrial já está no segmento. Nesse mercado, os preços de energia foram substancialmente menores que os do chamado mercado cativo entre 2003 e 2006. Deverão continuar menores até 2009, mas a diferença já começou a cair. Para a Petrobras, o "mercado livre", ao desfazer os contratos de longo prazo, provocou uma "transferência econômica", em prejuízo das hidrelétricas estatais, superior a R$ 5 bilhões.

Ao elaborar o novo modelo energético, que entrou em vigor em março de 2004, além de não romper frontalmente com o paradigma anterior, Dilma adotou um modelo misto - nem estatizante nem excessivamente liberal. As escolhas da ministra desagradaram ao grupo mais à esquerda do governo, que considerou que a nova estrutura consolidou um "hiato regulatório" no setor. Num envio frenético de correspondências ao Ministério de Minas e Energia e ao Palácio do Planalto, após as eleições de 2006, a estatal enumerou várias "falhas" no modelo.

Além da disputa de poder e das divergências em torno dos rumos do setor elétrico, a falta de entendimento no setor de gás foi o principal ponto de atrito entre a ministra e a Petrobras. Pelo modelo vigente, as usinas termelétricas só entram em funcionamento quando os reservatórios de água das hidrelétricas ficam com pouca água, comprometendo a geração futura de energia. Em média, isso acontece durante três meses do ano.

A Petrobras, por sua vez, é obrigada a fornecer gás natural para essas usinas por meio de contratos firmes. A estatal, que acabou se tornando ao longo do tempo a proprietária da maioria das térmicas do país, possui um parque térmico de 4.000 MW, com previsão de chegar a 2010 com 4.700 MW. Suas vendas totalizam 1.490 MW médios, incluindo o consumo de suas próprias usinas. Como o custo desses ativos é estimado em US$ 490 milhões por ano, a estatal alega que vem sofrendo prejuízo anual de cerca de US$ 260 milhões.

Por isso, a Petrobras passou a fornecer gás natural para a indústria e o comércio. Com o objetivo de assegurar o fornecimento do produto, fechou contratos firmes de gás, diferentemente do que fez com as termelétricas - na visão da estatal, a lei não a obriga a fechar contratos firmes com elas. O problema é que o consumo industrial de gás cresceu muito, diminuindo a margem de entrega às usinas.

As termelétricas fora do controle da estatal passaram a alertar as autoridades de que não teriam gás para gerar energia, em caso de necessidade. Nas conversas oficiais, diretores da Petrobras afirmavam que o abastecimento estava garantido. A partir de 2004, a Aneel começou a fazer testes de ligação das usinas térmicas. Todas as vezes em que isso aconteceu, constatou-se que as usinas não funcionavam, porque não havia gás.

A percepção do setor elétrico é a de que a Petrobras vendeu a mesma molécula duas vezes. Fez uma espécie de "overbooking". "Ela vendeu gás para as térmicas e, como elas não usam todo o tempo, vendeu para outros consumidores", disse uma fonte oficial. "Fomos enganados pela Petrobras. E os preços explodiram", observou um integrante do setor. Diante disso, a Aneel passou a comunicar ao mercado que não contasse com a energia gerada por essas usinas.

A situação irritou profundamente a ministra Dilma Rousseff, que, mesmo deixando o comando de Minas e Energia em julho de 2005 para assumir a Casa Civil, continuou comandando as ações do setor. Os embates em torno do gás se acirraram. Do ponto de vista empresarial, concordou-se no governo que a estatal, que tem acionistas privados, agia para diminuir os prejuízos que vinha sofrendo, mas, na avaliação do governo, esses interesses não poderiam estar acima dos do país.

Dilma criou, então, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) para monitorar o cumprimento das determinações do governo, e passou a tratar pessoalmente do caso do gás. Pressionou a Petrobras a investir nesse setor, a importar gás natural liquefeito e a converter suas térmicas em bi-combustível -na falta de gás, produziriam energia a partir de óleo combustível. A investida não funcionou. Nos testes seguintes promovidos pela Aneel, novamente se descobriu que a Petrobras continuava sem fornecer gás às usinas.

Em maio passado, o Ministério das Minas e Energia propôs um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) à Petrobras. A estatal não aceitou, mas concordou em assinar um Termo de Compromisso (TC), um instrumento legal mais brando. Nele estabeleceu-se um cronograma de fornecimento de gás até 2011. Na hora de definir os volumes de gás, a Aneel deixou que a estatal informasse as quantidades a serem fornecidas. Em contrapartida, exigiu que, em caso de descumprimento, seria aplicada uma multa.

Nos dois primeiros meses do TC - junho e julho -, a estatal não entregou o gás prometido, o que levou a Aneel a aplicar-lhe multa de R$ 84 milhões. No fim de julho, o presidente convocou reunião do CNPE para avaliar a situação. No dia do encontro, o Valor revelou que o gás não estava sendo entregue nas quantidades acordadas. Um pouco antes do início da reunião, Gabrielli teve uma discussão áspera com o presidente da Aneel, Jerson Kelman, por causa do suposto vazamento da informação. No embate, Gabrielli alegou que a Petrobras teve que fornecer gás a duas térmicas do Rio de Janeiro, para atender a uma possível emergência dos Jogos Pan-americanos, e para a Argentina, que sofreu um apagão e pediu socorro ao Brasil.

O governo não considerou as explicações convincentes. Apesar do clima tenso do encontro, a ministra Dilma encontrou uma forma para desanuviar o ambiente. "Que bom porque, assim, não preciso brigar com a Petrobras", afirmou ela, referindo-se à discussão entre Gabrielli e Kelman.

Após o encontro, Aneel e Petrobras acertaram um novo prazo para o cumprimento do termo de compromisso. Segundo fontes do setor, desde 31 de agosto a estatal, está cumprindo o que prometeu.

As divergências não conseguiram arranhar o prestígio de Dilma e Gabrielli junto ao presidente Lula. Dilma é a principal ministra do governo e Gabrielli está cada vez mais próximo do presidente. Responsável pela porção crível do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - a Petrobras responde por 183 projetos de investimento até 2010, num desembolso total de R$ 171,7 bilhões, um terço do PAC -, Gabrielli reúne-se pelo menos uma vez, a cada 15 dias, com o presidente. Há um mês, Lula jantava em Brasília com governadores do PT quando soube que o presidente da estatal estava na cidade. Imediatamente, convidou-o para se juntar ao grupo.

Se as divergências não azedaram a relação entre Dilma e Gabrielli, o mesmo não se pode dizer quanto a Ildo Sauer. A ministra não dirige a palavra ao diretor da Petrobras. Há tempos, vem tentando substituí-lo, mas sempre esbarra na resistência do próprio Lula, que tem afeição por Sauer, e na de Gabrielli. A amigos e interlocutores, Sauer disse que, tendo sido escolhido pelo presidente, só deixará o posto demitido.

A crise no setor de gás aumentou o grau de preocupação com um possível apagão e criou as condições para uma mudança na estatal, mas isso ainda não está definido. Dilma quer colocar na área de Gás e Energia uma pessoa de sua estrita confiança: Maria das Graças Foster, que cederia a presidência da BR Distribuidora ao petista José Eduardo Dutra.