Título: EUA já esperam um ajuste significativo no déficit comercial
Autor: Phillips, Michael M.
Fonte: Valor Econômico, 21/09/2007, Especial, p. A16

AP Casa de câmbio em Paris mostra a menor cotação do dólar em relação ao euro desde o lançamento da moeda européia Durante anos, economistas advertiram que os EUA não poderiam continuar acumulando dívidas para cobrir seu enorme apetite por carros, petróleo, eletrônicos e outros produtos importados. Algum dia, diziam, a conta chegaria.

Parece que esse algum dia pode ter finalmente chegado.

Depois de 16 anos nos quais os EUA basicamente tomaram emprestado e compraram enquanto boa parte do resto do mundo emprestava e vendia, a economia mundial parece estar passando por uma mudança fundamental. Os exportadores americanos estão encontrando mercados externos sedentos por seus produtos. Os consumidores americanos estão começando a moderar suas tendências gastadoras, à medida que o boom do mercado imobiliário se transforma em crise. A China, o Oriente Médio, a Europa Central e a África estão absorvendo mais das exportações do mundo. Resultado: em vez de depender tão fortemente da demanda americana, a economia mundial pode ficar mais balanceada.

Como pano de fundo há um dólar mais fraco em relação ao euro, à libra esterlina e a muitas outras moedas. O euro atingiu US$ 1,41 este mês, o nível mais alto desde seu nascimento, em 1999. Um índice do J.P. Morgan que compara o dólar a uma cesta de 16 moedas, ponderadas pela importância delas ao comércio exterior dos EUA, está agora perto do menor nível em mais de dez anos, um declínio ajudado pela decisão esta semana do Federal Reserve, o banco central americano, de cortar os juros.

Tudo isso pode muito bem representar um grande reajuste do déficit comercial americano, que começou em 1991 e inchou a um nível que pareceria inimaginável não muito tempo atrás. A medida mais ampla de saldo comercial, conhecida como déficit de conta corrente, atingiu no fim de 2005 o recorde histórico de 6,8% do produto interno bruto dos EUA, o valor de todos os bens e serviços produzidos no país. No segundo trimestre deste ano, havia caído a 5,5%. Isso pode ser apenas o começo.

"Estamos decididamente prestes a ter algum realinhamento significativo" do comércio exterior, diz o economista Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard. Rogoff, que já foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, vinha prevendo que o déficit de conta corrente encolhesse "em talvez meio ponto porcentual do PIB ao longo dos próximos 12 meses". "Agora", acrescenta, "parece provável que ele caia 1,5 ponto porcentual". E, diz ainda, "podemos ver algo mais rápido".

Algo "mais rápido" pode ser doloroso para os americanos. Como eles financiaram sua prosperidade com dinheiro emprestado, a reversão desse hábito implicaria um período em que viveriam de maneira menos opulenta.

Se o dinheiro estrangeiro ficar escasso e o déficit comercial diminuir subitamente, os americanos podem se ver diante de um dólar em queda, taxas de juros em alta e um desaquecimento da economia. Isso poderia provocar ondas de choque ao redor do mundo, da China ao Brasil, passando pela Europa, caso os consumidores locais não compensem a demanda perdida dos Estados Unidos, que têm a maior economia do mundo.

Se isso acontecer mais gradualmente, a recente onda de prosperidade americana pode continuar, de maneira mais amena. Muito depende de o Fed e outros bancos centrais administrarem um relaxamento dos mercados de crédito sem reacenderem a inflação. Em qualquer caso, diz Joseph P. Quinlan, estrategista-chefe de mercado do Bank of America (BofA), "não apenas temos de vender mais ao resto do mundo, temos de apertar nossos cintos aqui em casa".

Ainda é questão em aberto quanto o déficit comercial dos EUA vai se contrair, ou se algo novo pode mais uma vez fazer com que aumente. "A chave é entender se esta é uma mudança fundamental na trajetória ou se é temporária", diz Catherine L. Mann, uma economista da Brandeis International Business School.

As implicações para os EUA podem ser profundas. O dólar fraco torna as importações mais caras no país e aumenta o risco de inflação. As taxas de juros também devem ficar mais altas, já que os americanos teriam de oferecer rendimentos maiores para induzir os estrangeiros a pôr seu dinheiro nos EUA.

"Vamos sentir um impacto real à medida que o (déficit) de conta corrente encolhe", diz Rogoff, de Harvard. "A pessoa comum verá isso como parte de uma inflação maior que reduz seus ganhos salariais e padrão de vida." Seu cálculo informal é que uma queda de 20% no valor do dólar reduza a renda dos americanos em 3%, descontando a inflação.

O enorme desequilíbrio comercial dos EUA é produto de uma combinação de causas e efeitos que decorrem basicamente das taxas de câmbio, da atratividade dos mercados financeiros do país, da prodigalidade dos consumidores americanos - ante a tendência a poupar em outros países - e de diferenças persistentes nas taxas de crescimento econômico entre os países.

Entre 1999 e 2006, a economia americana cresceu em média 2,9% por ano, enquanto as da Alemanha e do Japão tiveram taxas de 1,4%, segundo o FMI. O crescimento mais rápido implica mais importações. Quanto mais ricos os americanos se sentiam, mais eles gastavam em brinquedos chineses, sapatos brasileiros, motocicletas alemãs, camisas das Ilhas Maurício ou carros japoneses. O boom imobiliário deu aos consumidores uma sensação de bem-estar que os levou a gastar à vontade.

Ao mesmo tempo, a maior diferença serviu como um atrativo para os investidores estrangeiros. De maneira geral, é mais fácil ganhar dinheiro investindo em ações de uma economia que cresce de maneira constante do que numa letárgica. A tentação é especialmente forte quando os mercados financeiros têm a liquidez dos americanos.

O governo americano aumentou o efeito ao gastar mais do que arrecada e emitir títulos do Tesouro para cobrir suas dívidas. Os bancos centrais da China e do Japão, entre outros, compraram trilhões de dólares em papéis dos EUA.

Durante muitos anos, a combinação dessas forças levou os EUA a comprar muito mais do exterior do que vendia. No segundo trimestre deste ano, o déficit em conta corrente foi de US$ 191 bilhões, ou mais de US$ 760 bilhões numa base anualizada. Para pagar por essas importações, os EUA precisam atrair US$ 2,1 bilhões em investimento estrangeiro todos os dias.

Mas as condições mudaram bastante. Hoje o crescimento americano está abaixo do de muitos de seus parceiros comerciais. A confiança sem fim e o apetite insaciável dos americanos por compras também foram estremecidos pela queda nos preços de imóveis e, mais recentemente, pelo aperto de crédito.

O dólar fraco e o euro forte estão também tendo um impacto em empresas européias que tentam explorar o mercado americano, como a alemã Volkswagen.

A Volkswagen perdeu mais de ? 2,5 bilhões, ou cerca de US$ 3,5 bilhões, na América do Norte nos últimos cinco anos, em parte em conseqüência da fraqueza do dólar. A montadora informou este mês que está avaliando produzir carros nos EUA novamente, pela primeira vez em quase 20 anos, como meio de reduzir sua exposição a flutuações cambiais. Atualmente, a única fábrica da Volkswagen na América do Norte fica em Puebla, no México.