Título: Judicialização não é um avanço, mas uma distorção
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2007, Opiniao, p. A14

Reza a teoria política que, na democracia, o normal é um Executivo que administra, um Legislativo que legisla e um Judiciário que julga.

Por desajustes decorrentes do fato de que a democracia brasileira é uma experiência que, ao longo da história republicana, foi interrompida por longos períodos autoritários; ou porque os Poderes tentam se consolidar de forma equivocada, se sobrepondo aos demais; ou porque os atores da nova democracia têm reais boas intenções de suprir lacunas de outras instituições - seja qual for a razão, o único diagnóstico possível é o de que o Executivo e o Judiciário têm tomado para si atribuições do Legislativo; e o Congresso, respondendo a pressões externas, passou a tomar como atribuição sua a do Judiciário, de julgar. Na prática, essa confusão revela uma disputa entre os Poderes pela simpatia da opinião pública e não se traduz em ganhos para o país.

O Executivo, ao manter a prática de legislar, carregou um vício trazido da ditadura. No período militar, o decreto-lei, de autoria do Executivo, só podia ser aprovado ou rejeitado - não cabiam emendas - e a rejeição só ocorria por dois terços dos votos, isto é, se este número não fosse atingido, ou o decreto não fosse apreciado no prazo, a matéria era simplesmente considerada aprovada. A medida provisória, que substituiu o decreto-lei, é passível de alteração pelo Congresso e não existe mais aprovação automática. No final dos governos FHC, mudanças legais restringiram o poder do Executivo de reeditar MPs. Apesar de atenuado ao longo dos anos, o poder de legislar do Executivo ainda se mantém.

Conforme foi se ampliando o horizonte democrático, o Legislativo foi se atribuindo um poder enorme de julgar - investigar, convocar, prender, pedir indiciamento, expor publicamente supostos criminosos -, não sem pagar o preço de uma retração de sua atividade legislativa. Tomado por escândalos desde o primeiro governo eleito, o Congresso reagiu expandindo o seu poder sobre o que deveria ser atribuição do Judiciário. O resultado é que descuidou-se da que era a sua função principal, a de legislar, deixou inúmeras leis complementares previstas no novo texto constitucional sem regulamentação e produziu incontáveis hiatos jurídicos em todas as áreas. Essa opção não foi inocente: ela teve implicações políticas inerentes a uma Casa cujos representantes são eleitos.

O Judiciário, ao assumir como cruzada cívica preencher as lacunas jurídicas deixadas pelo Legislativo, passou a legislar - uma prática que tem se intensificado nos últimos anos na mais alta Corte, o Supremo Tribunal Federal. Esse é um fato particularmente preocupante, visto que o STF, um poder que não é eleito, produz leis que não precisam ser referendas pelo Legislativo, o Poder que abriga os eleitos para legislar. Basta que interprete uma suposta intenção legislativa para mudar uma situação jurídica já estabelecida. É o que se chama tecnicamente de "judicialização da política e das relações sociais".

A ânsia de preencher lacunas nas leis tem levado o Judiciário a abandonar os formalismos jurídicos. Na decisão sobre a fidelidade partidária, por exemplo, isso foi flagrante. O STF se manifestou sobre uma resposta dada pelo TSE, no dia 27 de março, a uma questão suscitada por partidos políticos sobre a fidelidade partidária. A resposta à consulta não era uma decisão jurídica, mas uma simples manifestação - que, aliás, se sobrepôs a uma decisão do próprio Supremo, de outubro de 1989, que considerou que os mandatos eram dos eleitos, não dos partidos. O Supremo entendeu que a resposta do TSE era uma decisão, e que essa decisão valia mais do que a sua anterior - quando, afinal das contas, uma decisão do STF está acima de qualquer uma que o TSE possa tomar.

Se o Congresso não conseguir sair da letargia legislativa a que foi condenado por uma crise constante, essa distorção e sobreposição de atribuições entre os Poderes, que cada vez mais invade suas funções, não apenas continuará, mas se tornará uma tradição jurídica. E o Congresso não conseguirá reagir se não se tornar novamente crível, para os eleitores e para as outras instituições. Esse trabalho de retomada de credibilidade deve começar pelo Senado, de onde vazam provas profícuas de venalidade. O fato de a instituição manter um presidente como Renan Calheiros não colabora em nada com isso.