Título: Malaquias , Marcelo Mazon
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 05/11/2007, Legislação, p. E2

Qualquer criança aprende que bater em alguém que não possa se defender é covardia. As noções mais rudimentares de ética evocam a consciência mínima do injusto. Ouve-se aos quatro cantos do direito de defesa, da inocência do acusado até prova em contrário, e que até o mais vil dos criminosos tem direito a um julgamento justo. Pois bem, querem amarrar as mãos do contribuinte para que não possa, nem tenha como se defender e seja possível lhe arrancar os bens antes que algo possa fazer.

Exagero? O exame de um dispositivo legal em vigor combinado com dois projetos de lei revela que não. Trata-se do artigo 739-A do Código de Processo Civil (CPC); do Projeto de Lei Complementar nº 75, de 2003 que pretende alterar o Código Tributário Nacional (CTN) para que somente com depósito em dinheiro seja possível suspender a exigibilidade de dívida fiscal; e de um projeto de lei em fase de elaboração que modifica a lei de execução fiscal e permite que a cobrança de dívida fazendária se inicie pela Procuradoria da Fazenda e não mais no Poder Judiciário.

A Lei 6.830, de 1980, prevê que os débitos fiscais podem ser discutidos em ação anulatória de débito, em mandado de segurança, em embargos à execução fiscal e em ação de repetição de indébito. O contribuinte devedor pode ir a juízo contestar uma dívida via mandado de segurança ou de ação anulatória de débito. Caso não consiga suspender a exigibilidade da dívida, poderá ser executado. Ainda que executado, pode garantir a dívida, defender-se com embargos e pedir ao juiz que aguarde o julgamento da ação proposta para cancelar o débito. Se pagou tributos indevidamente, resta pedir a restituição em ação de repetição. Em relação a tributos federais pode compensar valores indevidamente pagos com débitos existentes. No entanto, as mudanças pretendidas visam a alterar drasticamente esse estado de coisas, de forma que o contribuinte não tenha realmente como se defender, ainda que a Constituição assegure o direito de defesa.

O artigo 739-A do CPC diz que os embargos à execução não têm efeito suspensivo. Isso significa que se o contribuinte deve ao Fisco, terá de dar garantia, ou a Justiça penhorará seus bens. Garantida a dívida, poderá o contribuinte se defender com embargos, mas que somente terão efeito suspensivo se o juiz assim decidir.

Se o juiz decidir não suspender o processo de cobrança antes de julgar os embargos, a garantia dada será excutida, isto é, os bens penhorados serão leiloados, por exemplo. Nessa hipótese, ainda que o juiz julgue improcedente a dívida, o contribuinte não terá como reaver o valor de seus bens a não ser que entre na Justiça com uma nova ação, espere longos anos e, se e quando vencer a demanda, terá de esperar numa fila para receber o valor a que tem direito. É necessário que se acrescente à legislação um dispositivo que assegure ao contribuinte que tenha seus bens executados antes do julgamento final do caso uma medida que lhe devolva prontamente o valor desses bens.

Por outro lado, caso o contribuinte decida contestar uma cobrança antes de vê-la executada, para não correr o risco de enfrentar uma situação como a descrita, caso seja aprovado o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 75, de 2003, somente conseguirá evitar isso se depositar o valor da dívida. Ou seja, se não tiver o dinheiro o Fisco virá buscar seus bens. Isso é terrível, mas pode acontecer.

-------------------------------------------------------------------------------- Hoje, na dúvida se cobra e se multa, e se nega o direito de defesa. Isso equivale a atirar primeiro e perguntar depois --------------------------------------------------------------------------------

A idéia de execução sumária é abominável, pois evoca a idéia da morte de uma pessoa indefesa diante do carrasco que se travestiu na posição de acusador, juiz e executor, completamente à margem da lei. A palavra execução, comumente usada para retratar o ato de matar alguém, também se aplica ao ato que põe em prática uma decisão judicial. Pois bem, a aprovação do PLC nº 75, abriria espaço para a execução sumária de dívidas fiscais.

Difícil imaginar quem não teve contra si uma cobrança injusta ou indevida, ou soube de alguém que, por erro na apuração do imposto ou no cálculo da multa, ou algum exagero, teve contra si uma cobrança exagerada ou injusta. Hoje, na dúvida se cobra e se multa, e se nega o direito de defesa. É comum se tentar transferir ao contribuinte o ônus de provar sua inocência, quando o ônus da prova cabe ao acusador. Isso equivale a atirar primeiro e perguntar depois.

O mandado de segurança é uma medida para proteção contra abusos e ilegalidades. Entretanto, se aprovado o PLC 75, a liminar em mandado de segurança somente suspenderá a exigibilidade de dívida fiscal se o contribuinte efetuar o depósito do valor da dívida. Isso equivale a negar o mandado de segurança e traz à lembrança a medida provisória pela qual em 1990 se proibiu a concessão de liminar contra o Plano Collor.

E tem mais. Um projeto de lei ainda em fase de elaboração prevê que a Procuradoria da Fazenda dará início à cobrança de dívidas fiscais. Posteriormente, na fase de julgamento o processo será encaminhado para o Poder Judiciário. Ora, isso é sem dúvida uma forma de autotutela. Imagine o credor dando início ao processo de cobrança. Isso legalizaria em definitivo a execução sumária. Os agentes do poder público ficariam legalmente investidos de poderes para acusar, condenar e executar. Assim, caso esse estado de coisas evolua como promete, será legalizada a execução sumária para os contribuintes.

Fala-se muito em reforma tributária. No entanto, políticos e população aceitam resignados a idéia de que a complexidade do tema permitirá apenas uma reforma parcial, como sempre ocorre. É imperativo que se discuta o aprimoramento do sistema e não apenas como fortalecer os meios de se elevar a arrecadação. Civilidade exige bom senso, razoabilidade e preocupação com a evolução do sistema.

Marcelo Mazon Malaquias é advogado, sócio da área tributária do Pinheiro Neto Advogados

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