Título: Autoridades, tragédia brasileira
Autor: Bernardo, Maristela
Fonte: Correio Braziliense, 20/01/2011, Opinião, p. 25

Socióloga e jornalista

No primeiro dia de janeiro, a presidente disse: ¿Pela primeira vez o Brasil se vê diante da oportunidade real de se tornar nação desenvolvida¿. E associou essa oportunidade a ¿forte componente ambiental¿. No dia 12, a região serrana do Rio começou a contar seus mortos e a bater o triste recorde de maior desastre ambiental do país. No momento em que escrevo, são 717 mortos e uma destruição incalculável de famílias e patrimônios. Nos dias seguintes, autoridades diversas, do nível municipal ao federal, recitaram o mantra preferido, o de culpar a natureza e a população por ocupar áreas de risco.

Jamais se colocam em questão como responsáveis omissos. Preferem anunciar medidas, liberação de somas vultosas, andam na lama, falam dos milímetros de chuva. Decretam estado de calamidade pública, alerta máximo. Amplia-se o limite de saque do FGTS, antecipa-se o Bolsa Família. Anuncia-se a implantação, nos próximos quatro anos, de um sistema integrado para prevenção de desastres naturais, com supercomputador, pluviômetros e radares de última geração. O governador faz frase de efeito: ¿A prioridade número um é dar dignidade aos mortos e condições de vida aos vivos¿.

O espetáculo patético das autoridades, falando sem parar para embaralhar nossos sentidos, merece também lágrimas, tão pungentes como as que derramamos diante do cenário de fim de mundo no Rio. E o que faziam as autoridades nos anos anteriores, e nos anteriores aos anteriores, e desde sempre?

O modelo predominante de autoridade que temos é o pior desastre que nos atinge. Alguém tem que declarar ¿estado de calamidade pública¿ e determinar ¿alerta máximo¿ da população contra esse escárnio de pessoas que nunca se reconhecem como causa da dor alheia, da perda de tudo em poucos segundos: filhos, família, casa, lembranças, lugar no mundo.

Vivemos a desgraça de um país sem estadistas, de políticos menores que fazem cálculo até mesmo diante de uma tragédia. Ao anunciar a liberação disso e daquilo, de cifras retumbantes, visam sobretudo livrar a cara pelo não feito e pelo malfeito. Aqui, a profissionalização da política se deu não pela competência, mas pelo uso do poder público para finalidades pessoais e partidárias.

A prevenção adequada a danos decorrentes de eventos ambientais extremos altamente previsíveis não foi feita no plano federal, nem no estadual, nem no municipal. Faltaram recursos? Mas, ao final de 2010, os partidos políticos decidiram dar uma força extra ao próprio caixa, aumentando o fundo partidário em R$ 100 milhões, passando a um total de 301 milhões. Afinal, é prioridade pagar dívidas de campanha.

A fusão entre questões sociais, econômicas e ambientais está dada, não tem volta. Exige autoridades com coragem, dispostas a bancar um futuro sustentável, ainda que ao custo das próprias ambições. O problema é que ninguém ainda ¿mudou a forma de governar¿ no Brasil, qualidade equivocadamente atribuída ao ex-presidente Lula no discurso de posse de Dilma. Ao contrário, a nossa história pós-ditadura é a de exercício patrimonialista do poder público, de projetos personalistas. Não mudou o conceito e a prática de autoridade e, no seu conjunto, as autoridades que temos são uma tragédia política que não pode ser esquecida quando nos emocionamos diante da destruição no Rio e em outros lugares do país.

As mesmas autoridades que enchem a boca para dizer que o país será em breve a quarta ou quinta potência mundial, parecem não se sentir profundamente envergonhados pelo fato de que mais de 50% da população ainda não tem acesso a saneamento básico. Ou por haver tanta gente em risco iminente de vida país afora porque não são tomadas as providências necessárias para fazer cumprir regras corretas de uso do ambiente natural, geralmente por medo de consequências eleitorais.

Concordo com quem defende responsabilização criminal de pessoas físicas que, no exercício da autoridade pública, não cumpriram o dever e contribuíram para mortes evitáveis. É hora de parar de nos comportarmos de forma meio anestesiada, tolerante, conformada e conivente com as autoridades.

E, quanto à presidente Dilma, é certo que começou mal ao cumprir o ritual de loteamento do Estado em capitanias fisiológicas. Mas isso não é irreversível. Sempre pode dar um murro na mesa. E poderia fazer bom ensaio não deixando a tragédia do Rio cair no esquecimento e não permitindo que regras ambientais necessárias sejam jogadas no lixo, como ameaça acontecer com o Código Florestal. É com essa coragem que se chega a ser nação desenvolvida de fato.